Sobre o pó das estradas, ou a lama, ou poças de água, mulheres e crianças andavam descalças. Eu levava sapatos para a escola, mas logo à saída me descalçava. O calçado, feito por medida no sapateiro da terra, era pesado, rígido dos protectores de ferro e cardas, e era desconfortável.
Era a liberdade nos pés, era a ligeireza, sempre fundamental para fugir de rapazola que me quisesse puxar as orelhas por lhe ter gritado a alcunha, ou de grupo que me quisesse “contar as velhas” – parvoíce muito em uso que consistia em agarrar rapazinho, deitá-lo ao chão, baixar-lhe calças e ceroulas, expor as suas misérias ao escárnio de raparigas de passagem, e sepultar a pobre gaita debaixo de bom punhado de terra.
Os pés descalços estavam expostos às agressões dos caminhos: topadas em pedras que rebentavam a cabeça dos dedos, espinhos, pregos, vidros que os laceravam… E o tratamento era terrível, autêntica tortura, aplicada por mãe desesperada, que outro remédio não conhecia, a criança que berrava e fugia: escaldar a ferida. Isso mesmo: meter o pé em água fervente, ou pingar azeite a ferver sobre o buraco infectado do espinho que acabava de ser extraído.
Sou desse tempo. Quase sempre às portas da morte: lombrigas, infecções, gripes constantes, sarampo, tosse convulsa, que me fazia ver luzes na escuridão do quarto quando tossia os pulmões, diarreias de caixão à cova, icterícia… Mas nunca tive piolhos, nem tinha, e só vi percevejos na asseada Lisboa.
Fui tratado, quase sempre, com a “medicina popular”. Dolorosa, fedorenta, ineficaz. Conheci demasiado bem o “mercúrio”, a tintura de iodo, a tintura de mostarda, o bálsamo, a aguardente com açúcar queimada e abafada, os escaldões, a enxúndia, as rezas. E depois, viva o progresso, vieram as sulfamidas, o Vick Vaporub, os rebuçados do Dr. Bayard, a aspirina… Mas esses são outros tempos, de transição para a nossa modernidade – em que, paradoxalmente, abundam os saudosos desse Portugal imundo, subnutrido, rude, malcriado e, o que mais me espanta, da “medicina popular”. A esses, deixo as palavras de um dos grandes mestres da escrita:
“Oo geeraçom que depois veo, poboo bem aventuirado, que nom soube parte de tamtos malles, nem foi quinhoeiro de taaes padecimentos!” (Fernão Lopes, Crónica d’el-rei D. Joham I)
FOTO do velho Kodak do meu pai: o meu irmão em bebé, eu mais atrás, a minha mãe, descalça; provavelmente 1964)
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