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segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Entropia

Na primeira metade do século XV, em romance meu não publicado, o sonho de reversão da entropia: 
“Prouvera ao Todo o Poderoso que as coisas corressem em sentido contrário – a vida, da velhice para a infância, os rios do mar para a nascente, as montanhas do cume para o vale que um dia foram — e todo este mundo sempre em mudança seria um lugar bem diferente e certamente bem mais tranquilo, talvez ainda intacto o Jardim do Éden onde fomos criados e nados: Adão e Eva, conhecendo antes o mal do pecado original havê-lo-iam evitado e, se o não fizeram, nós, seus descendentes, à medida que os anos passassem, corrigiríamos cada um dos erros da juventude que nos atormentam na velhice e não terminaríamos os nossos dias enfermos, rabugentos, amargos como fel, antes risonhos e felizes como crianças de peito a quem nem o Mundo nem a alma, nem o próprio corpo doem, até que, paulatinamente, desapareceríamos bem aconchegados no ventre materno. Os próprios rios, em vez de desalmadamente procurarem destino incerto resvalando por encostas, lançando-se por penhascos, embatendo furiosos contra rochedos que lhes barram o caminho, espreguiçar-se-iam tranquilos da foz para a nascente, contornando obstáculos, evitando sofrimentos, e as montanhas, livres do pecado da soberba, minguariam das alturas para o vale ou a concavidade que antes foram, sentindo-se tanto mais próximas do Céu quanto mais dele se afastavam...”
JCC, não publicado

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

A canção do vinho branco

O jantar foi ao borralho, na aldeia: costeletas do cachaço grelhadas na lareira, pão, vinho branco e novo para mim, velho e tinto para a minha mulher, laranja caseira, enorme e deliciosa, passas de figo e jeropiga da minha produção. 
O branco está uma maravilha, seco, límpido (passei-o a limpo na terça-feira passada). E, inevitavelmente, ao bebê-lo me recordei da canção do vinho branco, interpretada aqui a escassas dezenas de metros, na Associação Recreativa Montense, há quase meio século.
Uma artista da rádio, cujo nome esqueci há muito, abrilhantava o espectáculo e, para nele envolver o povo, organizou um "festival da canção": ganharia quem tivesse mais aplausos. 
Muitos moços acorreram ao palco, ansiosos por brilhar, por ganhar. Beatles para os estudantes, fado e folclore para os outros. 
A competição estava a terminar sem que a força das palmas anunciasse vencedor inequívoco, quando o Tio A., a cair de bêbedo, cambaleou até ao palco, travado pela mulher: 
— Homem, tu tem juízo, não me envergonhes mais!
E ele: — Larga-me, tartamudeava, que vou mostrar a esta rapaziada como é que se canta.
— O que é que vossemecê vem cantar?
— Eu venho cantar a canção do vinho branco.
O povo delirou. E ele cantou por entre gritos e assobios de encorajamento:
Ai vinho branco
Que te adoro tanto
A toda a hora
Bebo um casco inteiro
Sem deitar nada fora...
Os aplausos foram ensurdecedores. Ganhou.

Pois eu hoje não bebi um casco, apenas um único copo. É que o safado tem mais de 15 graus!

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

As bicicletas (1)

Aprendi tarde, e mal, a andar de bicicleta. Não havia nenhuma em minha casa, o que me fazia sentir desfavorecido face a miúdos ainda mais pobres, os quais, embora sem altura para chegar do selim aos pedais, as montavam com as pernas por debaixo do quadro e se exibiam no adro em corridas e acrobacias.
É certo que o meu pai tinha motoreta, e então eram tão raras na aldeia como os automóveis. Mas nem me passava pela cabeça montar nela, cair certamente, amassar chapa, riscar a pintura; receava sobretudo que, por volta da meia noite, quando o meu pai lhe pegasse para sair, sempre atrasado para o trabalho distante, ela não trabalhasse, fazendo-o perder o dia, ameaçando até o emprego.
Um dia, um primo, uns anos mais velho, apareceu com bicicleta. Talvez do tio, já não sei. E lá vamos nós a correr pelas ruas, ele a pedalar, eu atrás apeado, esbaforido. A certa altura, propôs ensinar-me.
Comecei por recusar, a medo de cair. Ah, mas ele amparava a bicicleta, não me deixava cair!
Assim tranquilizado, montei a custo no selim, tentei chegar aos pedais. 
— Não precisas, eu empurro, depois aprendes a dar meias pedaladas. 
Poucos metros depois, já ele largava a bicicleta por breves momentos, e eu ganhava confiança. Até que, quase no fim da rua, entendeu terminada a lição, que a paciência das crianças é curta. E não encontrou melhor forma de marcar o final do que com violento empurrão no guiador, fazendo-me estatelar violentamente no pó da estrada.
Esfarrapado, dorido, chorei, protestei contra a estupidez do acto.
— Todos caem, precisavas de aprender!
Não voltei a montar em bicicleta até que, aí pelos meus dezoito anos, outro primo, mais novo, surgiu com velha pasteleira. Experimentei sozinho, rua abaixo, pouco depois já pedalava pelas ruas da aldeia, triunfante, eufórico, por, finalmente, ter aprendido algo que qualquer miúdo de seis anos fazia, e muito melhor do que eu.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Levantar quando entra senhora

Aquele meu amigo estava sentado à secretária no seu gabinete quando entrou intempestiva uma professora a ralhar — só quem não foi professor desconhece a elegância de modos de algumas delas.
Gritou, barafustou; ele, sereno, continuava a escrever com a sua Parker.
E ela, talvez por ter esgotado o rol das queixas docentes:
— Oiça lá, o colega não se levanta quando está a falar com uma senhora?
Ele levantou então os olhos, fitou-a e respondeu:

— Sempre!

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Vale a pena ter seguros?

Eu, que nada percebo de Direito, interrogava-me: culpa e responsabilidade pelos estragos do mau tempo devem ser imputados ao vento, que os causou, à Câmara Municipal de Lisboa, que não cortou as árvores da cidade, ou aos proprietários dos carros, que os estacionaram na proximidade das árvores, apesar dos alertas da meteorologia e da protecção civil?
Não foi necessário sequer aguardar por julgamento; acabo de ouvir que a CM de Lisboa assume a responsabilidade. 

Assim sendo, admitindo que daqui para a frente o Estado assume a responsabilidade pelos danos provocados pelas  forças da natureza — incêndios, derrube de árvores, inundações, certamente, e por que não tremores de terra — vale a pena continuar a pagar exorbitâncias em seguros para proteger casa e carro?