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segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Arma uirumque cano

As armas, ainda há tão pouco tempo excomungadas, amaldiçoadas, proscritas, proibidas, confiscadas, apreendidas, culpadas de toda a violência — salvam vidas, dizem-me diariamente nas televisões! São precisas para salvar vidas! Mais: quanto mais mortíferas forem, mais vidas vão salvar!


Mas nem todas as armas salvam vidas: só as que estiverem nas mãos dos nossos; as dos nossos inimigos tiram vidas inocentes, sempre em hediondos crimes de guerra.

O sanguinário hino francês, o mais fofinho português, recuperaram literalmente o significado de antanho:

Aux armes citoyens, formez vos bataillons

Marchons, oui marchons

Qu'un sang impur abreuve nos sillons


Às armas, às armas!

Sobre a terra, sobre o mar

Às armas, às armas!

Pela Pátria lutar

Contra os canhões marchar, marchar

E assim cá vamos, como no hino da bufa, cantando e rindo, levados, levados sim pela voz da tuba mediática, clamor sem fim.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

O último a saber

 Confirma-se que o interessado é o último a saber.

Soube há pouco, a propósito de outro assunto, pelo escritor e amigo João J. A. Madeira, que o meu romance Gilvaz, o homem das cicatrizes foi finalista do Prémio Leya 2021.

Nunca me disseram nada. Mas a informação está no site da Leya.


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O altar do papa

Em finais dos anos oitenta, dava a informática de massas os seus primeiros passos, uma grande, grande, multinacional contactou uma pequenina empresa, recém-formada, encomendando um software específico para gestão da produção.

Os sócios reuniram, a esfregar as mãos de contentes: uma venda, e logo de muito prestígio! Publicidade que lhes permitiria dar um grande salto no mercado nascente! Mas, conversa de quem ainda não está muito habituado a ganhar dinheiro, demais a mais fácil porque tinham produzido recentemente um programa que respondia exactamente à solicitação:

— Quanto vamos pedir pelo software?

— Ora, o preço a que o temos vendido, dez contos. E é lucro limpo, que já está mais do que pago!

— Estás maluco? Por esse preço, não nos levam a sério!

— Então cem contos.

O terceiro sócio, até então calado, lembrou o óbvio: o gestor de compras da multinacional certamente se abotoava com uma percentagem do valor; a ser esse o caso, e apostava que era, teria que untar as mãos a alguns subordinados para manterem a boca fechada; logo, o preço teria de ser alto para conseguirem a encomenda.

— Mil contos?

— Proponho mais: dez mil contos.

Teve de batalhar para persuadir os sócios. Lá acabaram por ceder e chamaram um funcionário para “customizar” o programa: mudar o logotipo e pouco mais. 

O programa foi imediatamente comprado sem regateios.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Jantar conceitos

São as minhas amigas que escolhem os restaurantes para os nossos jantares. E, por critério, a moda, as opiniões de amigas: —Ainda não foste lá? Tens de experimentar! O conceito é fantástico, cada prato um orgasmo! — ouço-as confidenciar entre si.

Sorrio interiormente. Quem diria que são tão rápidos e tão fáceis nas mulheres de meia-idade? Mas nada digo, afinal, mais do que jantar bem, o que aprecio é a companhia e a amizade, solidificada por um quarto de século, desde que, entusiástica e esforçadamente, fizemos o nosso mestrado em Linguística.

Eis-nos a entrar para uma dessas tascas, agora tão na moda em Lisboa, tão selecta que lugar só por marcação com muita antecedência, tão exigente que só abre às 19H e fecha, imperativamente, às 22. 

Confusão generalizada, barulheira ensurdecedora. Acabamos por nos apertar em mesa acanhada, sentados em mochos de madeira. Não há ementas, e a empregada, ou será patroa, moça brasileira, magra, braços completamente tatuados, dois arganéis nas ventas, diz-nos que o melhor é fotografarmos um quadro negro onde a giz estão indicados os pratos.

Quase não nos conseguimos ouvir. uma das minhas amigas sugere que mandemos vir um prato de cada item e partilhemos, para, assim, podermos provar de tudo. Calo as minhas reticências, afinal já como muito menos ao jantar, se as doses forem tão bem avivadas como suspeito, talvez dê para saborear. Só recuso a sangria, para mim tem de ser vinho tinto, alguma coisa tem de se aproveitar.

Chega o primeiro prato. Polvo à lagareiro. Depois de irmãmente dividido, calha a cada um de nós — uma colher de chá, conforme a foto 1


mostra. Logo que ocorre a quadra de Camões:

“Cinco galinhas recheadas

Prometeu o senhor de Cascais

A meia que mandou

Deixou-me com apetite para as mais.”

Os pratos sucedem-se. Melhores ou piores, sempre a mesma parcimónia (foto 2, choco com tinta, quase impossível de distinguir da batata, tanto à vista como ao paladar; fotos 3 e 4, ainda por partilhar). Com quantidades tão ínfimas, que, mesmo se estivesse cheio, não me sentiria saciado. Por desconfiar do pior, recuso sobremesa. Interrompem-me para que não diga o que parece a mousse de chocolate, embora reconheçam que sabe igual ou pior.



Cabe-me, agora, organizar o próximo jantar, na minha região. Uma responsabilidade, para não desiludir, na certeza de que não vamos comer conceitos.