Na época, voar não era trivial e poucos se podiam dar ao luxo de o fazer. No meu caso, o meu pai era operário da KLM, a companhia holandesa de aviação, pelo que tinha direito a grande desconto no preço do bilhete.
A aventura começou bem antes: fui sozinho, já me não recordo como, para Lisboa, e na confusão do aeroporto, balcões, línguas, voos a chegar e a partir, perdi o avião. Soube depois que ainda o tinham atrasado 15 minutos à minha espera. O senhor do balcão, algo preocupado com um miudito de província, enfezadito, catorze anos, escreveu-me um bilhete para apresentar em Schiphol: "Please help mr. Catarino to..."
Passei a noite no café, mesmo ao lado da pista, a ver as descolagens e aterragens dos enormes jactos ali ao lado, por entre o cheiro asfixiante do petróleo queimado. E na manhã seguinte, lá fui a pé com os outros passageiros para o "meu"avião, o tal Super Caravelle, pouco mais do que a camioneta de carreira da minha terra, mas com asas. Falávamos todos uns com os outros como se fôssemos conhecidos, a disfarçar o aperto de estômago quando a subida era cortada por brusca descida, e nova subida, cada vez mais altos...
Estávamos indignados, que na véspera tinham roubado o título ao Joaquim Agostinho, acusando-o de dopping. Não acreditávamos: ele nem sequer precisava disso, que venceu com mais de uma hora de avanço. Não. Agostinho era humilde, era batalhador, era esforçado, e os poderosos deste país, a começar por essa cambada da federação, invejavam-no, tinham-lhe raiva, desprezavam-no pelas suas origens campónias.
Pouco depois, o almoço. Olhei envergonhado para os talheres, tantos, para que serviriam? E não ousava começar a comer para que se não apercebessem da minha ignorância rústica, quando uma das senhoras riu alto: -- Bom, isto deve servir tudo para o mesmo. Vou usar este mais pequenino, que me dá mais jeito, A tensão desanuviou, cada qual comeu com os talheres com que bem entendeu, mesmo os meus companheiros da classe média lisboeta não estavam habituados a tanto requinte. Deixei-os em Bruxelas e segui já ao pôr-do-sol para Amsterdam, baixinho, sobre os polders onde ainda havia moinhos de vento como nas ilustrações do chocolate holandês, a beber café delicioso.
No aeroporto, não me consegui desembaraçar: o meu Inglês era pobre, o Francês melhor, até que o polícia me pergunta: "Combien de temps vous rendez-vous en Hollande?" Eu puxava pela cabeça, até tinha estudado o verbo rendre no final do 3º período, mas o que significava? E nada me ocorria nem o polícia parecia capaz de encontrar sinónimo. Valeu-me a chegada do meu pai, passaporte na mão.