Nasci pobre, em aldeia pobre deste país então pobre. Não passei fome: o meu pai era padeiro, tinha salário e um quilo de pão de segunda por dia. Não tive brinquedos, nem festas de aniversário, nem guloseimas. Nenhum luxo, nem sequer pelo Natal, em que, pela calada da noite, o Menino Jesus descia pela chaminé enfarruscada para deixar no meu sapato peúgas, roupa interior, talvez uns rebuçados.
Não me sabia, não me sentia pobre: vivia num mundo alternativo, de sonho, em permanente devaneio, prolongando no quotidiano a fantasia dos livros que devorava, uns emprestados, outros requisitados na Biblioteca Itinerante Calouste Gulbenkian: eu era o Tarzan, rei dos macacos, o Robinson Crusoé de uma ilha deserta do tamanho da minha rua, buscava o tesouro dos piratas nas minhas Matas (quarenta homens na mala do morto / ió ió e uma garrafa de rum, cantava o papagaio empoleirado no meu ombro), fazia no meu Nautilus milhares de léguas submarinas, ou sobrevoava África de balão, quando não era injustamente encarcerado em masmorra, de onde me evadiria um dia para ser o conde de Monte Cristo da vingança... Batia-me em vielas lado a lado com D'Artagnan e os três mosqueteiros, fugia de casa com o Huck Finn, embarcava rumo ao desastre com Pedro, Pescador de Baleias, acompanhava Ismael e Ahab na caça insana da terrível baleia branca…
Professores falavam sem que os ouvisse, entediava-me nas aulas de Desenho, brincava nas Oficinas, em cada sábado formava no recreio para a ordem unida da Mocidade Portuguesa -- ou faltava a umas e outras, para andar de barco no Alcoa, pelo que no segundo ano quase reprovei, precisamente a Mocidade, a que só podia dar três faltas...
Todas as disciplinas contavam para a média, e eu, muito mais novo que os meus colegas, era um desastre a Canto Coral, uma nódoa a Desenho, um incapaz a Oficinas, um nulo a Ginástica (assim se chamava então), cujo professor dava também Trabalhos no Campo – duas horas seguidas a ditar apontamentos; embora mediano a Matemática, brilhava a Português, História, Ciências, o que não chegou para a média de catorze, e perdi a bolsa de estudo que me permitira ir estudar. E ao terceiro ano, o primeiro do curso de Formação de Serralheiros, reprovei: 8 a Oficinas, 9 a Desenho de Máquinas -- nas restantes disciplinas, positivas bem razoáveis.
Vergonha tamanha que, se acaso saí de casa naquelas férias grandes, foi às escondidas. E nunca mais reprovei outro ano.
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