A morte recente de seis jovens no Meco reacendeu a polémica em torno das praxes. Estremam-se as posições, discute-se mais com a fúria das paixões do que com a racionalidade dos argumentos, o que não surpreende já que esta matéria, como a maioria das que enchem os jornais, é do plano emotivo e não do racional. Radica em convicções profundas, em necessidades básicas dos mamíferos: pertencer a um grupo, submeter os mais novos, ensinar-lhes pelo recurso à força quem manda, qual o seu lugar na hierarquia.
Diz a ciência que temos três cérebros, o reptiliano, o mamífero (na imagem, sistema límbico), o neocórtice. Ora o cérebro mamífero, onde se situam as convicções profundas, é cego, é surdo a argumentos, como bem sabe quem já discutiu com um adepto de um clube de futebol ou um crente fervoroso. Os defensores das praxes, como os dos clubes de futebol, das antigas ou das novas religiões, não se deixarão persuadir pelos argumentos contrários, antes, com o neocórtice, procurarão argumentos socialmente válidos, justificações nobres e altruístas para as respectivas práticas, esgrimindo com as palavras — onde alguém de fora vê humilhação eles dirão integração...
Palavras, leva-as o vento. As palavras, as frases — a linguagem humana — são forma imperfeita de representação daquilo que se nos afigura ser a realidade em que vivemos. E somos criaturas maliciosas. Forjamos argumentos para defender o indefensável, o absurdo, o mal. Já li apologias da excisão feminina, da escravatura, do infanticídio, da tirania, da exploração do homem pelo homem, da livre posse de armas de fogo, dos touros de morte, agora das praxes... Não se pense que, tomado por desonestidade intelectual, misturo assuntos com graus de gravidade muito diferentes: todas eles são instanciações da barbárie que constantemente, por todo o lado, ameaça a civilização. Na Síria ou no Mali, na República Centro-Africana ou na aldeia da Índia em que o conselho de anciãos — os defensores da tradição — condena uma jovem a violação colectiva. Não importa onde: como escreveu Agustina, "em toda a parte há sete cores e sete ventos, e o homem é só um" (1). Insisto: é a barbárie que nos ameaça, em todos os tempos, em todos os lugares, por mais que os requintes da civilização a ocultem momentaneamente dos nossos olhos.
O ser humano não nasce bom, ao contrário do que sustentava Rousseau, antes parece sonhar constantemente com oportunidades para exercer o mal sobre os seus semelhantes com malvadez que as brutas feras dificilmente conseguem imitar — e elas têm a atenuante de agirem por instinto e lutarem por algo vital: comida, território, sexo. Portanto, é ao Estado, enquanto garante dos valores fundamentais da civilização, que cabe agir com firmeza, não tolerando outros estados no seu território, nem outros direitos para além do da República. Tanto os alunos como as instituições de ensino superior devem ser responsabilizados — estas, na pessoa dos seus dirigentes, civil e criminalmente, sempre que cúmplices em todo e qualquer acto que ofenda os Direitos Humanos. Devem ser obrigadas a entender, pelo Estado que as financia, que as aprova, que a sua função primordial não é produzir diplomas manhosos, licenciar políticos, promover festanças, antes contribuir para a criação de um escol livre, insubmisso, participativo, com fome de saber, que tanta falta faz ao nosso país. Ou fechar.
Imagem: Carl Sagan, Os Dragões do Éden, Círculo de Leitores, p. 65
(1) A Sibila, p.37