Andaba o rei Bamba a labrar no xeu campo...
Caía a chuva torrencial, pelas janelas embaciadas avistavam-se lameiros nos acessos ao Pavilhão Novo. O professor Lindley Cintra prosseguia a leitura da lenda do Rei Vamba ou Rei Wamba, que recolhera de pobre camponesa das Beiras aquando da pesquisa para o seu Atlas Linguístico da Península Ibérica. Assim tinham de ser as fontes: analfabetos, mais de sessenta e cinco anos, com os dentes da frente para que os esses ápico-alveolares não pudessem ser atribuídos à sua falta.
E eu via distinto o rei lavrador, pernas nuas, pés descalços, uma mão na rabiça, outra na vara com o aguilhão, a gritar incentivos aos bois Ah, Galante! Força, Moreno!
Isto é que era monarquia: a merecer o pão com o suor do rosto, sem vergonha de sujar as unhas na terra em vez de parasitar na Corte, esquiar nas estâncias alpinas, ou veranear nas praias quentes da França republicana, a fugir dos paparazzi, ansiosos para encher com fotos de flirts e pequenos escândalos as revistas cor-de-rosa que nos salões de cabeleireira entretêm as mulheres, lhes dão matéria para fabricar sonhos, sobretudo às desiludidas com as imperfeições masculinas — tanto sapo beijado e nenhum metamorfoseou em belo príncipe!
A proclamação da República não extinguiu a realeza. Multiplicou-a. Democratizou-a. O que escasseia em marqueses, duques, condes e viscondes sobeja em príncipes e princesas. No café, correm histéricas as crianças, guincham desalmadamente, jogam à bola? A Suas Altezas Reais tudo se tolera. Não querem ir à escola? Seus desejos são ordens. Exigem dormir todas as noites com a mamã? Meu Príncipe! Minha Princesa! O Mundo será como quiseres, tua vontade a minha vontade, a nossa vontade, que apenas cá estamos, todos nós, para te servir!
Longe, longe, a uns trinta e tal anos de distância, distraio-me a ver moça de saltos altos que corre para a paragem de autocarro junto à faculdade, evita poças e lama, o vendaval revira-lhe o guarda-chuva, a chuva fustiga-a, ensopa-lhe os longos cabelos, depois perco-a de vista e amodorrado escuto as histórias do Mestre, encanto-me com a monarquia visigótica, nobres de carne, osso e trabalho: Andaba o Rei Bamba a labrar no xeu campo...
Álvaro, Álvaro, como sinto teus versos, como os faço meus!
Toda a gente que eu conheço (...),
Toda a gente que eu conheço (...),
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...(...)
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
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