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terça-feira, 29 de abril de 2014

Um amor inventado

Cai novamente o silêncio sobre a pensão; desta vez, apesar das dores testiculares que lhe não dão parança, o João não se atreverá a subir até ao quarto da Berta: oficializado o namoro, há que respeitar o decoro — como poderia ele trair a confiança de dona Noémia e do marido, que o receberam como a homem sério e honesto? Mal cai na cama adormece profundamente, prostrado por sono e cansaço; a maçaneta da porta roda, rangendo baixinho, mas não a ouve, como não ouve depois o bater discreto dos nós dos dedos, nem os sussurros com que a Berta o chama, e é triplamente pesarosa que a moça se retira: por ele não ter subido até ao seu quarto, por ter adormecido tão rapidamente quando o amor o esperava, e por não poder apagar por hoje o fogo que a consome. Ah, mas não pense o leitor que a rapariga desiste tão facilmente, sabido como é que as mulheres são o diabo: vai ao chaveiro da
cozinha, pega a chave mestra, e sempre silenciosa como uma sombra, entra-lhe no quarto, mete-se na cama do rapaz — não vai ser fácil despertá-lo desse sono, de Morfeu, dir-se-ia, se comparação erudita não destoasse em história de sopeira e canalizador; já os amantes estão outra vez deitados no soalho, outra vez a monotonia das cenas de meses atrás, abaixo e acima, etc., melhor é experimentá-lo que imaginá-lo, já dizia o Camões, passemos adiante, o que importa é que amanhã o João estará arranhado, mordido, e que vergonha!, terá o lábio inferior rebentado, bastará um olhar de dona Noémia para saber que a criada, que criou como enteada e a quem quer como filha, a não desapontou, também ela não larga a presa uma vez filada; recato, proibições, importantes para salvar as aparências e preservar o bom nome da casa, como todas as dificuldades, aguçam o engenho e espevitam o desejo, fortalecendo este amor inventado para que sobreviva às agruras do dia-a-dia enquanto o tempo passa, fazendo de dois um, ei-los engalfinhados, enrolados, por cima ou por baixo, não importa, sempre tão dentro um do outro quanto possível, nessa comunhão de corpos e de almas tão mística que só um jarreta como Moisés a poderia esquecer nos seus mandamentos, tendo sido necessário ao Pai enviar o Filho em pessoa à Terra para ensinar a distinguir prazer de pecado: Amai-vos uns aos outros... Com os desenvolvimentos que se conhecem.
Um amor inventado, Leya online

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