Passo em frente à televisão onde a minha sogra segue atentamente as cerimónias de Fátima. Ainda ouço ao padre pregador, dito sem se desmanchar a rir: "...a minha alma resolvida no meu Deus..." Deve ser isto a Fé: acreditar sem compreender, acreditar por não compreender, deixar-se levar pela melopeia encantatória, esquecer os porquês, jamais perguntar o que quer isso dizer, que entende por alma, em que acepção emprega o verbo resolver, qual a importância dos possessivos, se acaso estará a insinuar que há outros deuses para além do "meu", sem falar no mistério insolúvel da transformação feminina de uma religião que era masculina do Génesis ao Apocalipse...
Sustenta Alexandre Herculano em obra de cujo título me não recordo e não posso agora procurar porque escrevo no café, longe das cantorias religiosas e procissões, que esta ingenuidade nacional, recheada de santinhos, água-benta e devoções torna o nosso povo muito mais feliz, apesar da sua pobreza, do que os povos protestantes: enquanto o povo português se diverte em romarias e festas, apaga as agruras da vida nas orações que ocupam a cabeça sem a deixar deprimir, enfrenta as catástrofes com resignação católica, tenta mudar o destino pelo negócio das promessas, aos proletários protestantes a sua religião árida, despojada de santinhos, de ícones palpáveis, de ritos encantatórios só lhes deixa como escapatória as bebedeiras brutais após o trabalho, a violência contra os seus, contra as empresas que os sugam até ao tutano, contra a sociedade injusta e desigual que os condena a breves vidas em bairros sórdidos, a sofrer desde a tenra infância horários de trabalho hoje impensáveis, acima das dezasseis horas diárias, isto quando tinham horários de trabalho...
Não é difícil rebater Herculano, apontando situações similares entre nós. Em matérias como o sofrimento humano, o trabalho infantil, a miséria, a ignorância, a violência brutal contra os mais fracos, o alcoolismo, não temos lições a receber dos ingleses. Mas não duvido de que, no fundo, tenha alguma razão. À minha sogra, com 85 anos, ver as cerimónias de Fátima é das poucas coisas que ainda lhe interessam nesta vida; e basta ver a alegria dos peregrinos que por todo o país acorrem ao Santuário para pensar que este ópio do povo é, afinal, bem mais barato e muito mais inofensivo do que muitos outros. E inspirador. O excerto que se segue é do meu Um amor inventado, e passa-se nos anos sessenta do século passado. As rimas e assonâncias são propositadas.
"Chega o patrão, surpreende-se ao ver ali o ciclista do Verão, em pé, especado, expressão de gato que entornou o leite, cumprimenta-o, mas não se alonga em perguntas parvas, do género “O que é que o traz por cá?” — é óbvio que desta vez não faz cicloturismo; quem tem criada moça e atraente como é a sua não precisa de grande imaginação para adivinhar...
— Canalizador, não é? recordou, estendendo-lhe a mão. É isso. E dos bons, o lava-loiça não voltou a entornar depois que você mo arranjou. Vamos até à sala de jantar, comprei uma televisão, está na hora do Telejornal.
Cumprimenta clientes que jantam, conhecidos que seroam, toda a gente com os olhos pregados no televisor, TV, dizem os entendidos, ouvidos atentos às conversas, lábios comentando e descomentando, com futebol, fado e Fátima vamo-nos anestesiando e passando o tempo, no ecrã pagadores de promessas rasgam os joelhos entre rezas mastigadas mecanicamente — prometeram, obtiveram a graça, é a altura de a pagar para que no dia do Juízo Final nada conste em seu desfavor no razão divino.
— Venha cá, chama imperiosa a dona da pensão, e o rapaz tem um sobressalto, sabe que vai ser interpelado, admoestado, julgado, receia não passar no exame. É isso mesmo: tem de ouvir das boas, não que dona Noémia se tenha esquecido de que também foi na sua juventude criada de servir, também ela engravidou de moço fogoso, quem o imaginaria ao ver o seu discreto marido entretido a criticar o sacrifício dos peregrinos, contrapondo à fé dos ignorantes as novas ideias da igreja, agora mais avessa a sangue derramado, mais arredada de ritos pagãos."