De dia, agarrado à maquineta, o copiador artesanal que fabricara seguindo um modelo que remontava, pelo menos, ao tempo dos bolcheviques — uma moldura de madeira com rede fina de cortinado pregada para prender o estêncil com pioneses, um rolo de pintura e tinta para duplicador, sempre comprada a medo — reproduzia panfletos; à noite, com um dos camaradas da sua célula, distribuía-os pelas caixas de correio dos prédios, deixava-os em pequenos montes, por aqui e por ali, debaixo de carros, com uma pedrinha em cima para que o vento os não levantasse enquanto estivessem por perto; por onde passavam, deixavam 'selos', etiquetas autocolantes com slogans, nos postes das paragens dos autocarros e, mais pela calada da noite, pintavam paredes. Por vezes, ouvindo-os entrar sorrateiramente no hall dos prédios, os roncos paravam e ouvia-se uma voz desconfiada e ameaçadora: — Quem está aí? Sossegavam o 'popular': — Guarda-Nocturno! Uma vez ou outra foram encurralados pela polícia. Então, embora quase morrendo de medo, dirigiam-se-lhes afoitos e pediam uma informação qualquer que fizesse sentido: onde parava o 9, qual o caminho para... Os guardas, habituados a ver fugir os meliantes e vendo o aspecto normal dos rapazes, ajudavam-nos, solícitos, aproveitando para perguntar se tinham visto algo de suspeito. — Sim, sr. guarda, uns cabeludos ali mais atrás, que fugiram quando nos avistaram...
Lisboa amanhecia colorida pelos sinais da Revolução, nas paragens dos autocarros e dos eléctricos, nas escolas e faculdades, nas paredes das fábricas, até nas sanitárias públicas. Nos autocarros da madrugada, quando regressavam do 'trabalho', ouviam os desabafos de polícias desesperados, após outra noite de vigilância e de perseguições fracassadas: — Esses filhas da puta dos pinta-paredes dão-me mais trabalho que os meus filhos. Trocavam olhares cúmplices: sem que o suspeitasse, talvez o seu filho fosse também um dos tais."
Do lacrau e da sua picada
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