Um grave acidente de motorizada deixou o — chamemos-lhe Zé, então o mais comum dos nomes próprios— incapacitado, quase inválido. Foi chamado para a Inspecção Militar. Quiseram-no dar por inapto para o serviço militar. Indignou-se.
Enquanto os outros mancebos se queixavam da vista, dos joelhos, das varizes, num esforço vão para se livrarem da guerra, ele, mais receoso das línguas femininas que das balas e das minas dos turras, protestava: O quê, eu, inapto? Veja aqui! E de pé tocava com as mãos no chão, depois fazia flexões. Eu estou bom, está a ver?
No seu desespero, imaginava as conversas no rio, uma avó a gabar o físico do neto, rapaz tão “profeito” que tinha sido logo apurado para a marinha, uma mãe a retorquir que o seu rapaz iria ser furriel, depois da recruta talvez passasse a oficial, moçoilas a lembrar que também os seus namorados tinham sido apurados, casariam logo que tivessem a tropa feita, e depois todas, a voltarem-se para a sua mãe: Então o teu Zé ficou livre? E murmurando entre beiços: Coitadinho!
Aleijadinho para o resto da vida!
Ah, não! Não ele! E tanto se torceu, tanto suou, que um dos militares já sem paciência disse para os outros: É pá, se o gajo faz tanta questão de ir à tropa, que vá. Prá minha vida…
Para grande gáudio do Zé, foi então apurado, tal e qual como os restantes rapazes da terra, tão “profeito” como eles. E nessa semana as conversas no rio versaram não sobre a sua invalidez, mas sobre a sua estupidez, todos a quererem ficar livres da tropa sem conseguirem, ele a querer ir, podendo livrar-se.
Chegou a altura da incorporação. Recruta, depois especialidade: atirador. Nas costas dele, riam-se. Os outros eram electricistas, escriturários, cozinheiros, tudo o que os pudesse afastar da mata e das emboscadas, só ele — atirador, a especialidade dos que outra não conseguiam.
Desculpava-se, em tom superior: Lá fora, somos todos atiradores.
Mobilizado. Para a Guiné, onde a guerra recrudescia, fervia, matava e feria — eu recortava as longas listas de mortos que o Diário de Notícias publicava diariamente para afixar no bar da minha escola, o Instituto Comercial.
A cada aerograma do Zé, lido à mãe, analfabeta, na loja que era também posto de correios, a pobre arrancava os cabelos, gritava pelas ruas que era um dor de alma ouvi-la, tão alto e tão sofredoramente como os coitados dos porcos quando os capavam ou matavam:
— Ai o meu Zé, que o não volto a ver!
Ao lado, no adro, os homens que tinham também passado pela guerra, abanavam a cabeça e lastimavam a parvoíce do Zé, o único que vazava o seu terror para os aerogramas, afligindo escusadamente a mãe, que via já morto o seu menino, ou a regressar ainda mais inválido.
Um dia o Zé voltou. Quando tentava contar os seus episódios heróicos na guerra, o que fazia aos pretos mortos ou capturados, como conseguira a picha que trouxe em frasco de álcool, logo os outros lhe lembravam os aerogramas aflitos que quase matavam de susto a mãe.
— Eu? Isso é mentira! Nunca escrevi coisas dessas! Era a velha que queria fazer a suas fitas para que tivessem pena dela!
E de nada adiantava recordar-lhe o testemunho da Maria, que lia as cartas à mãe:
— Isso era para afligir a velha, para me deixar mal visto por não ter querido namorar com ela! Eu, hem? Sempre na dianteira, o alferes até me quis propor para condecoração. Eu é que recusei, não ligo a merdas dessas!
[Ficção. Como todas as minhas histórias, escusado seria lembrá-lo. Mas faço-o, não se ponha alguém a relacionar estes produtos da minha imaginação com este ou aquele. Ah, até o narrador (“eu”) é apenas o meu alter-ego.]
*Verso de Paxti Andion