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sexta-feira, 27 de maio de 2022

Miúdo insuportável

Eu. Refilão, mal-criado, convencido de que era esperto. Se hoje me encontrasse comigo mesmo, com seis anos, digamos, nem à bofetada me suportava. E era demasiado pequeno para a idade, mesmo naquela época em que as crianças eram muito mais pequenas do que hoje — vejam o Aniki Bobó e digam-me se dão doze, treze anos àqueles garotos.

Pois numa manhã apanhámos a camioneta da carreira para Alcobaça e logo que o revisor chegou, 

— Que idade tem o menino.

— Cinco anos, respondeu a minha mãe, a querer escapar ao pagamento de meio bilhete.

— Não tenho nada, tenho seis!

— Cala-te, que não sabes o que dizes!

Na altura, nem bofetadas, sempre bem merecidas, me calavam. Não as levei.

— Não sei o quê? Tenho seis anos, que os fiz no dia 7 de Abril!

A minha mãe, envergonhada a mais não poder ser, pôs-se à minha frente, É só bilhete para mim, o garoto não paga ainda, que só faz os seis anos para o mês que vem.

— Mas ele diz…

— Ora, ele nunca está calado! Quem sabe sou eu, que sou a mãe!

Eu não me calava. E a minha mãe, a ferver, Ah ladrão, cala-te que até te trinco todo!

— Com quê, se anda a arrancar os dentes?

Aliviou a fúria com sonoras gargalhadas. E eu, sentindo-me outra vez sabichão e engraçado, esqueci a teima.

terça-feira, 24 de maio de 2022

O vinho e o porco

Em finais do século passado, seguia eu num comboio regional para Lisboa a tentar ler livro chato, Les Langues Spécialisées, que ia apresentar nessa manhã no seminário de Lexicologia. Em Santarém, entra e senta-se a meu lado jovem negro que, vendo-me a ler em Francês, se me dirige nessa língua. E como ele insistia, eu, polidamente, fechei o livro e fui fazendo conversa.

Tinha vindo do Senegal, era uma espécie de bruxo, e muçulmano. Ia a Lisboa à oração semanal na mesquita. O seu trabalho consistia em exorcizar, desfazer mau olhado, pragas e feitiços, intervir como conselheiro matrimonial reconciliando casais desavindos, isto sem pôr em causa a poligamia. Fazia feitiços — bons, só para proteger o cliente de bruxedo de amante rancorosa —, aconselhava submissão à mulher que queria deixar o marido, orientava as orações e rituais islâmicos.

Eu, a querer voltar para o meu livro, e para ver se o calava, lá acabei por dizer que essa não era religião para mim, apreciador do vinho e da carne de porco.

—Sabes porque é que um muçulmano não bebe vinho?

Eu não sabia.

— Porque com o vinho ralha e bate na mulher, arma zaragata com os vizinhos…

Bom argumento. Embora eu pense, mas não lho disse, o vinho pague muita culpa injustamente, convencido que estou de que não faz as pessoas piores, apenas revela o que são.

— E a carne de porco?, perguntei, a abreviar-lhe o arrazoado.

Então ele explicou-me esse grande mistério: o Profeta estava a morrer à sede no deserto, apareceu um porco que o levou até uma fonte, salvando-lhe a vida. Pelo que decretou: não comas o porco, que é teu irmão!

Esta irmandade não me convencia. Mas passávamos então pelos estaleiros de construção da Expo e ele, apontando os operários, exclamou triunfante: — Vês? É só pretos a trabalhar nas obras!

Pois, pensei então, penso hoje: viver não custa, é preciso é saber viver.

quarta-feira, 18 de maio de 2022

No tempo da magia

 “Em nome do Anjo Bento…”

E a velha passava uma vez com a faca ferrugenta  sobre o cobrão

“Eu te corto…”

E a faca passava segunda vez

“Bicho peçonhento…”

Última passagem coma faca. A terceira.

“Está feito. Amanhã ou depois já estás bom. Mas, se o rabo se tivesse juntado à cabeça, ias para debaixo da terra.

Assim se tratavam as picadas de aranha. E todas as outras maleitas, cada qual com sua oração. O que faltava em médicos, em remédios, sobrava em rezas, as quais, se ditas com fé suficiente, porque então como hoje basta acreditar para que o milagre aconteça, tudo curavam graças à intervenção dos santos  da especialidade. 

segunda-feira, 16 de maio de 2022

Um médico de outro tempo

Aí pelos meus catorze anos, adoeci. De diferente, desta vez, o estar fora de casa, longe da família, num tempo em que a comunicação se fazia por carta, e o telefone estava reservado para emergências, ligando para o posto da terra e pedindo que fossem chamar alguém — enquanto não chegava, os períodos caíam como a chuva em Dezembro.

Tentei não ligar muito à doença; mas os donos da casa onde estava hospedado insistiram: tens de ir ao médico. Eu recusava. Além do mais, e não o confessava, preocupava-me a despesa, que a magra mesada dificilmente suportava. Adivinhando a causa da minha resistência, ofereceram empréstimo. Com o meu orgulho de fidalgo espanhol pelintra, recusei: não, obrigado, eu tenho. E acabei por ir ao consultório do médico que me recomendaram.

Diagnóstico: papeira. Enquanto passava a receita, o velho médico fazia perguntas de natureza pessoal, adivinhando a minha situação. Sim, era estudante, estava hospedado em Leiria, os meus pais eram emigrantes…

Quando me levantei, Quanto é sr. dr.? 

Não percebi a resposta: nada qualquer coisa.

E eu, desorientado: Ah, pago lá fora, à sua empregada?

Homem, desapareça daqui, que estudantes não têm direito a pagar!


segunda-feira, 9 de maio de 2022

Uma história mais de guerra*

Um grave acidente de motorizada deixou o — chamemos-lhe Zé, então o mais comum dos nomes próprios— incapacitado, quase inválido. Foi chamado para a Inspecção Militar. Quiseram-no dar por inapto para o serviço militar. Indignou-se.

Enquanto os outros mancebos se queixavam da vista, dos joelhos, das varizes, num esforço vão para se livrarem da guerra, ele, mais receoso das línguas femininas que das balas e das minas dos turras, protestava:  O quê, eu, inapto? Veja aqui! E de pé tocava com as mãos no chão, depois fazia flexões. Eu estou bom, está a ver?

No seu desespero, imaginava as conversas no rio, uma avó a gabar o físico do neto, rapaz tão “profeito” que tinha sido logo apurado para a marinha, uma mãe a retorquir que o seu rapaz iria ser furriel, depois da recruta talvez passasse a oficial, moçoilas a lembrar que também os seus namorados tinham sido apurados, casariam logo que tivessem a tropa feita, e depois todas, a voltarem-se para a sua mãe: Então o teu Zé ficou livre? E murmurando entre beiços: Coitadinho!

Aleijadinho para o resto da vida!

Ah, não! Não ele! E tanto se torceu, tanto suou, que um dos militares já sem paciência disse para os outros: É pá, se o gajo faz tanta questão de ir à tropa, que vá. Prá minha vida…

Para grande gáudio do Zé, foi então apurado, tal e qual como os restantes rapazes da terra, tão “profeito” como eles. E nessa semana as conversas no rio versaram não sobre a sua invalidez, mas sobre  a sua estupidez, todos a quererem ficar livres da tropa sem conseguirem, ele a querer ir, podendo livrar-se.

Chegou a altura da incorporação. Recruta, depois especialidade: atirador. Nas costas dele, riam-se. Os outros eram electricistas, escriturários, cozinheiros, tudo o que os pudesse afastar da mata e das emboscadas, só ele — atirador, a especialidade dos que outra não conseguiam.

Desculpava-se, em tom superior: Lá fora, somos todos atiradores.

Mobilizado. Para a Guiné, onde a guerra recrudescia, fervia, matava e feria — eu recortava as longas listas de mortos que o Diário de Notícias publicava diariamente para afixar no bar da minha escola, o Instituto Comercial.

A cada aerograma do Zé, lido à mãe, analfabeta, na loja que era também posto de correios, a pobre arrancava os cabelos, gritava pelas ruas que era um dor de alma ouvi-la, tão alto e tão sofredoramente como os coitados dos porcos quando os capavam ou matavam:

— Ai o meu Zé, que o não volto a ver!

Ao lado, no adro, os homens que tinham também passado pela guerra, abanavam a cabeça e lastimavam a parvoíce do Zé, o único que vazava o seu terror para os aerogramas, afligindo escusadamente a mãe, que via já morto o seu menino, ou a regressar ainda mais inválido.

Um dia o Zé voltou. Quando tentava contar os seus episódios heróicos na guerra, o que fazia aos pretos mortos ou capturados, como conseguira a picha que trouxe em frasco de álcool, logo os outros lhe lembravam os aerogramas aflitos que quase matavam de susto a mãe.

— Eu? Isso é mentira! Nunca escrevi coisas dessas! Era a velha que queria fazer a suas fitas para que tivessem pena dela!

E de nada adiantava recordar-lhe o testemunho da Maria, que lia as cartas à mãe:

— Isso era para afligir a velha, para me deixar mal visto por não ter querido namorar com ela! Eu, hem? Sempre na dianteira, o alferes até me quis propor para condecoração. Eu é que recusei, não ligo a merdas dessas! 

[Ficção. Como todas as minhas histórias, escusado seria lembrá-lo. Mas faço-o, não se ponha alguém a relacionar estes produtos da minha imaginação com este ou aquele. Ah, até o narrador (“eu”) é apenas o meu alter-ego.]


*Verso de Paxti Andion

terça-feira, 3 de maio de 2022

Da vida e da morte

Pontaria. Em cem biliões de galáxias do universo conhecido, talvez um entre uma infinidade de outros a brotarem como bolhas em pântano, cada uma com pelo menos cem biliões de estrelas, uma infinidade de planetas, saí eu do Nada logo condenado a regressar depressa a esse Nada, como luz que apaga e nada deixa atrás de si, nem sequer simples fotões a viajarem infinitamente no tempo e no espaço...

Comecemos pelo princípio óbvio. Não tivesse eu nascido e nada sofreria. Não me assustaria o medo do vazio que é a morte, essa eternidade sem tempo, sem ontem, hoje, amanhã, sem causa e sem efeito, sem conhecimento nem sofrimento nem prazer. Ou tivesse morrido na infância, como esteve para suceder vezes sem conta, antes de ter consciência de que estava vivo. Hoje, nem uma memória seria, falecidos todos aqueles que me me podiam recordar como pálida tristeza. 

Cheguei a velho. Vi partirem os meus pais, os meus tios, amigos, muitos dos meus conhecidos. Aos poucos, perdi alguma da minha repugnância por doenças, nojo pelos cadáveres. 

Aproxima-se, demore anos ou escassas décadas, a minha hora. Inexorável, inelutável. Vi morrer quem já não queria viver. Creio agora compreender o que sentiam então, essa indiferença que me chocava para com filhos, netos e bisnetos, para com a vida em geral.

A minha mãe. Internado em Santa Maria com aneurisma da aorta roto, retirou a máscara para em grande sofrimento, me dizer: -- Eu não vou morrer! E ano e meio depois, acamada, mãos amarradas para não arrancar os tubos das sondas, abanou a cabeça afirmativamente quando, já sem mais palavras para lhe dizer, lhe perguntei: -- Mãe, quer que me vá embora? 

A minha sogra. Levada ao hospital uma semana antes da morte, onde nada lhe encontraram, pedia que lhe desligassem o pacemaker que a mantinha viva.

Tios que Alzeimer enlouqueceu ao ponto de nem reconhecerem os filhos. Mortos em corpos vivos.

Pelo menos, não sofreram com o avizinhar da morte.

NOTA: não contei as galáxias nem as estrelas, baseio-me em números da ciência, certamente aproximativos, e é também possível que em vez de “biliões “ sejam “milhares de milhões“, sabido que é que o termo inglês “billion” designa um milhar de milhões.