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terça-feira, 17 de novembro de 2009

Entre cuidado e cuidado*

"(...) Semana após semana, ao chegar vindo do quartel, esperara encontrar a casa aberta, arejada, habitada, a Berta nos seus afazeres domésticos, a filha dormindo tranquilamente. Então bateria à porta, humildemente pediria para entrar e conversar, talvez se reconciliassem e acabassem na cama, amando-se outra vez, ou, se mulher continuasse zangada, sem sequer lhe falar, limitar-se-ia a ficar, contemplá-la, servi-la naquilo que deixasse, aguardando que lhe perdoasse.
Mas o mofo sobrepunha-se já aos cheiros a bebé, a pão, a comida cozinhada, ao próprio odor da Berta, tão peculiar, que o João sempre conseguira distinguir entre todos os outros; então, tristonho, cabisbaixo, deprimido, deixava-se ficar, sem cozinhar, sem comer, com vergonha de recorrer à casa paterna, pai e mãe desgostosos com a situação do filho, acabrunhados com a murmuração do povo, incapazes de conter remoques, ralhos e conselhos:
--- Bem te avisámos!
--- O que é que esperavas, casando à pressa com uma sopeira que mal conhecias?
--- Devias mas era ter-lhe chegado a roupa ao pêlo! Se lhe tivesses derribado uma asa, não poderia fugir assim, ainda por cima levando a tua filha!
No domingo, regressava cedo ao quartel, para nova semana de tortura, entre a esperança de que a Berta regressasse entretanto e o receio de que tal não acontecesse; entrementes, por todos os meios ao seu alcance, procurava-a incessantemente, sofridamente, e muitos daqueles a quem se dirigia apiedavam-se da sua dor, rara em homem daquela época, mais propenso a violências e a maus tratos do que a desgostos amorosos.
Ganhou coragem e voltou à Pensão Estrela, ciente da fúria e dos ralhos com que dona Noémia o receberia. Chorou-lhe depois no regaço, comovendo-a e dispondo-a a ajudá-lo; mas pouco lhe soube adiantar, salvo que a Berta por lá passara com a filha num braço, a sacola da roupa no outro. Emprestara-lhe dinheiro e ela seguira o seu caminho nessa mesma tarde, surda a rogos e a conselhos, recusando-se mesmo a pernoitar na pensão, receando talvez que a sua decisão enfraquecesse ou o João a perseguisse.
--- Procura a professora, aconselhou. --- E, se encontrares a tua mulher, tem juízo: não é com vinagre que se apanham moscas, toda a gente o sabe, ou deveria saber.
A professora recebeu-o friamente e só à vista de lágrimas sinceras se prontificou a contar-lhe o pouco que sabia: a Berta procurara-a, pedira-lhe, também a ela, dinheiro emprestado para recomeçar a vida bem longe do marido, que não queria voltar a ver, embora, admitia, muito gostasse dele. Era até possível que tivesse fugido para o estrangeiro, com um qualquer grupo que desse o salto. E mais não sabia...
Rogou por informações sobre possíveis paradeiros, direcções seguidas, mesmo que fossem meros palpites, contanto que permitissem saber se a deveria procurar a Norte ou a Sul, em cidade ou aldeia, em Portugal ou no estrangeiro. Mas também a professora não sabia...
--- E eu não posso desenfiar-me da tropa durante a semana, seria dado como desertor!
Apieda-se a professora, como dona Noémia se tinha já apiedado, mas só pode dar-lhe esperanças insinceras: que a aguarde, talvez acabe por regressar, diz, depois pensa melhor e acha preferível desenganar o João: a Berta tinha ouvidos fechados a conselhos, estava decidida a abandonar marido, país até...
--- Então acha que foi para o estrangeiro?
--- É provável. Ou talvez ainda esteja em Lisboa ou no Porto à espera de o conseguir fazer. Disse que queria ir para tão longe que nunca mais a encontrasses. Bem lhe falei na vossa filha, na vida familiar que estavam a começar, no amor que parecia existir entre vocês --- tudo isso acabou, respondeu-me. Que duvidavas da paternidade, logo nunca aceitarias a criança como tua filha; que --- e olhava reprovadoramente o João nos olhos --- lhe tinhas batido...
O João reconhecia toda a verdade nas acusações, baixava os olhos, cabisbaixo e envergonhado, nem perdia tempo a tentar justificar-se, alegando que, mais uma vez, fora a Berta a agredi-lo e daquela vez, saco cheio, não se contivera e respondera; infelizmente a cólera cegara-o e não se ficara apenas pela bofetada de troco, acrescentando mais duas ou três por conta das dívidas anteriores... Agora queria reencontrar a Berta, ou, pelo menos, saber se estava bem, se precisava de alguma coisa, ajudá-la como pudesse, se ela aceitasse, e aguardar o perdão, mesmo que demorasse.
Mas de nenhuma parte chegavam notícias. O João procurou nas grandes cidades, nas pequenas, nas vilas e aldeias deste país, por  lugarejos e casais. Telefonou para todas as terras onde tinha conhecidos, muitos deles da tropa, perguntando se por lá tinham visto mulher e criança com tais e tais características. Pediu os endereços e escreveu a emigrantes, em França, na Suíça, na Holanda, na Suécia, no Canadá, no Brasil, nos Estados Unidos. Em vão. Ninguém tinha visto a Berta, nenhum indício dela. Logo que teve uma pequena licença, passou dias e dias em embaixadas e consulados, dormindo no meu quarto de estudante, arrastando-me consigo na demanda, para o ajudar com os meus fracos conhecimentos de francês e de inglês. Nada. A Berta desaparecera deste mundo, como ameaçara fazer.
Dia após dia, noite após noite, pensou em partir também ele, sem rumo, sem destino, numa busca incessante, qual Avalor procurando em barca à deriva a sua Arima --- mas o Mundo é tão grande e o homem bicho da terra tão pequeno --- e uma réstia daquela razão que nos despoja da grandeza dos homens de antanho impediu-o de se perder por esses caminhos fora, numa peregrinação incomparavelmente mais louca que a volta a Portugal em que a conhecera..."
Um amor inventado (inédito), cap. XIII
*Verso de Bernardim Ribeiro

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