(NOTA: ler abaixo as secções I e II; devido à sua extensão, neste post publico apenas a primeira parte da secção III; para ler o conto na íntegra (14 pp.), vá passando por cá...)
"Li, casualmente, a notícia no jornal do dia seguinte. Pouco mais adiantava, para além de dados pessoais, idade, profissão, hora da ocorrência... Não se pode dizer que fôssemos amigos, pelo menos no sentido que a minha geração atribui à palavra amizade. Mas éramos conhecidos de longa data e, por estranha coincidência, tínhamos até almoçado juntos nesse dia fatídico.
--- Eleutério! Tu por aqui?, gritou-me, vendo-me entrar no restaurante.
Aparência bem cuidada --- desconfio que pintava já o cabelo --- fato completo, gravata a condizer, sapatos reluzentes, sempre bem aprumado, irradiava auto-confiança, como se espera de um mestre de karaté e, sobretudo, de um vendedor de seguros.
--- Qual vendedor, qual quê! --- protestava. Peritagens. E dava-me um cartão. --- Podes precisar.
Meneei duvidosamente a cabeça.
--- Que comes?, perguntava, apontando o menu. --- Olha, vou entregar uma proposta de indemnização à dona de um restaurante em Campolide, assaltada na semana passada. Entre roubo e estragos, mais de quatrocentos contos, exactamente dois mil cento e catorze euros, segundo a declaração da senhora. Sabes quanto é que lhe vou oferecer? Olhava-me interrogativamente, convencido de que eu ansiava por dar palpite.
Acabei por condescender: --- Para aí uns mil euros, mais coisa, menos coisa.
Abanou negativamente a cabeça, sorriso de comiseração para com tanta ingenuidade:
--- Até tenho vergonha: a proposta que lhe vou fazer é de (e retirou-a da pasta, para que eu a visse bem, autenticada pelo logótipo da firma ao alto) e leu, afastando o papel até à extensão máxima dos braços para evitar pôr os óculos ''de velho'': --- Duzentos e quarenta e sete euros!, concluía, lançando-me olhar triunfal.
--- Que ladroagem! Primeiro os gatunos, depois vocês!
--- É para tu veres como são estas coisas. Receio até que a senhora me bata quando lhe entregar a proposta, dizia, enquanto a arrumava cuidadosamente na pasta.
--- Ora, umas palmadas não devem afectar um mestre de karaté...
--- Claro que não. E dadas por moça gira como ela, são festinhas. Mas custa-me passar por estas situações. São humilhantes para nós dois, eu a oferecer uma esmola, ela roubada, como tu dizes, duas vezes, e a ter de aceitar uma miséria ridícula para não ficar sem nada.
Comíamos e conversávamos, passando dos escândalos financeiros à corrupção dos políticos, ambos convencidos de que vivemos num mundo canalha, cada qual querendo rasteirar o próximo, os poderosos sempre impunes, nós condenados ao cumprimento da lei e ao pagamento das multas, sem amnistias nem perdões fiscais... Eu sei: é uma maneira mesquinha de ver a vida, chamando a nós os meritozinhos e culpando os outros das nossas desgraças. Mas é muito reconfortante. No tempo de Homero, a fazer fé nas suas epopeias, a culpa era sempre dos deuses, que chegavam ao ponto de se metamorfosear em humanos para cometerem crimes que depois desgraçassem os inocentes. Hoje, sem deuses, temos de imputar responsabilidades aos mais poderosos, senão como explicar o seu sucesso e o nosso fracasso, se somos tão dotados como eles, igualmente esforçados --- mais, até, que singramos na vida sem esquemas, compadrios, corrupção?
Se há pandemia de gripe é porque as multinacionais a fabricaram, conforme o vídeo de um cientista ressabiado que circula na Internet, se há guerras é porque os americanos têm armas para vender, se o desemprego aumenta é porque os patrões despedem, na sua ganância desmedida, aproveitando a crise para aumentar os lucros, indiferentes ao sofrimento daqueles que mandam para o desemprego...
--- Mas falemos de coisas melhores, propunha o Jorge, tendo já sovado devidamente governantes e governados: --- A minha pequena vai cantar na televisão.
Surpreendo-me: --- Mas ainda é uma criança, não é?
--- Há quanto tempo a não vês?
--- Aí há uma meia dúzia de anos... Suponho que tenha agora treze ou catorze...
--- Dezasseis. Uma mulher feita, com tudo no sítio e bem a preceito. Um borracho de fazer virar a cabeça na rua. A mãe e eu não lhe podemos afrouxar a rédea, ou nem imaginas!
--- Sai ao pai?
--- Pior, bem pior. Com a idade dela eu portava-me bem.
--- Pois, não tinhas outro remédio...
O Jorge, inchado de orgulho, expunha os planos de carreira artística da moça, os quais não passavam pelo Conservatório, nem pela escola, nem por qualquer forma de prosseguimento de estudos. Era o sucesso imediato que pai e filha queriam, cientes de que havia que tirar todo o partido da frescura efémera da juventude, estar um passo, pequenino que seja, à frente da concorrência, interessar produtores e compositores, para depois, navegando já nas águas tranquilas do sucesso, curar então de completar a formação escolar precocemente interrompida: --- Sabes, agora há as Novas Oportunidades, também pode, em qualquer altura, tirar um curso numa universidade privada, basta ter 23 anos para entrar, pagar as propinas para passar, ainda mais sendo vedeta a prestigiar a instituição..."
--- Eleutério! Tu por aqui?, gritou-me, vendo-me entrar no restaurante.
Aparência bem cuidada --- desconfio que pintava já o cabelo --- fato completo, gravata a condizer, sapatos reluzentes, sempre bem aprumado, irradiava auto-confiança, como se espera de um mestre de karaté e, sobretudo, de um vendedor de seguros.
--- Qual vendedor, qual quê! --- protestava. Peritagens. E dava-me um cartão. --- Podes precisar.
Meneei duvidosamente a cabeça.
--- Que comes?, perguntava, apontando o menu. --- Olha, vou entregar uma proposta de indemnização à dona de um restaurante em Campolide, assaltada na semana passada. Entre roubo e estragos, mais de quatrocentos contos, exactamente dois mil cento e catorze euros, segundo a declaração da senhora. Sabes quanto é que lhe vou oferecer? Olhava-me interrogativamente, convencido de que eu ansiava por dar palpite.
Acabei por condescender: --- Para aí uns mil euros, mais coisa, menos coisa.
Abanou negativamente a cabeça, sorriso de comiseração para com tanta ingenuidade:
--- Até tenho vergonha: a proposta que lhe vou fazer é de (e retirou-a da pasta, para que eu a visse bem, autenticada pelo logótipo da firma ao alto) e leu, afastando o papel até à extensão máxima dos braços para evitar pôr os óculos ''de velho'': --- Duzentos e quarenta e sete euros!, concluía, lançando-me olhar triunfal.
--- Que ladroagem! Primeiro os gatunos, depois vocês!
--- É para tu veres como são estas coisas. Receio até que a senhora me bata quando lhe entregar a proposta, dizia, enquanto a arrumava cuidadosamente na pasta.
--- Ora, umas palmadas não devem afectar um mestre de karaté...
--- Claro que não. E dadas por moça gira como ela, são festinhas. Mas custa-me passar por estas situações. São humilhantes para nós dois, eu a oferecer uma esmola, ela roubada, como tu dizes, duas vezes, e a ter de aceitar uma miséria ridícula para não ficar sem nada.
Comíamos e conversávamos, passando dos escândalos financeiros à corrupção dos políticos, ambos convencidos de que vivemos num mundo canalha, cada qual querendo rasteirar o próximo, os poderosos sempre impunes, nós condenados ao cumprimento da lei e ao pagamento das multas, sem amnistias nem perdões fiscais... Eu sei: é uma maneira mesquinha de ver a vida, chamando a nós os meritozinhos e culpando os outros das nossas desgraças. Mas é muito reconfortante. No tempo de Homero, a fazer fé nas suas epopeias, a culpa era sempre dos deuses, que chegavam ao ponto de se metamorfosear em humanos para cometerem crimes que depois desgraçassem os inocentes. Hoje, sem deuses, temos de imputar responsabilidades aos mais poderosos, senão como explicar o seu sucesso e o nosso fracasso, se somos tão dotados como eles, igualmente esforçados --- mais, até, que singramos na vida sem esquemas, compadrios, corrupção?
Se há pandemia de gripe é porque as multinacionais a fabricaram, conforme o vídeo de um cientista ressabiado que circula na Internet, se há guerras é porque os americanos têm armas para vender, se o desemprego aumenta é porque os patrões despedem, na sua ganância desmedida, aproveitando a crise para aumentar os lucros, indiferentes ao sofrimento daqueles que mandam para o desemprego...
--- Mas falemos de coisas melhores, propunha o Jorge, tendo já sovado devidamente governantes e governados: --- A minha pequena vai cantar na televisão.
Surpreendo-me: --- Mas ainda é uma criança, não é?
--- Há quanto tempo a não vês?
--- Aí há uma meia dúzia de anos... Suponho que tenha agora treze ou catorze...
--- Dezasseis. Uma mulher feita, com tudo no sítio e bem a preceito. Um borracho de fazer virar a cabeça na rua. A mãe e eu não lhe podemos afrouxar a rédea, ou nem imaginas!
--- Sai ao pai?
--- Pior, bem pior. Com a idade dela eu portava-me bem.
--- Pois, não tinhas outro remédio...
O Jorge, inchado de orgulho, expunha os planos de carreira artística da moça, os quais não passavam pelo Conservatório, nem pela escola, nem por qualquer forma de prosseguimento de estudos. Era o sucesso imediato que pai e filha queriam, cientes de que havia que tirar todo o partido da frescura efémera da juventude, estar um passo, pequenino que seja, à frente da concorrência, interessar produtores e compositores, para depois, navegando já nas águas tranquilas do sucesso, curar então de completar a formação escolar precocemente interrompida: --- Sabes, agora há as Novas Oportunidades, também pode, em qualquer altura, tirar um curso numa universidade privada, basta ter 23 anos para entrar, pagar as propinas para passar, ainda mais sendo vedeta a prestigiar a instituição..."
3 comentários:
Finalmente consegui ler o conto, todo seguido, como gosto. Não há como uma manhã de Domingo, em que todos dormem, para haver um pouco de sossego.
De início não gostei muito. Demasiado datado, tipo "Morangos" (sem ofensa!...), de usar e deitar fora. Achei a linguagem das personagens ( a maneira de se exprimirem) um pouco forçada. Aquela cena do velório está pouco clara. Afinal era na casa do defunto ou numa casa mortuária? Se fosse esta última hipótese, a que propósito vinha o quarto com cama? Mas ainda assim, ninguém deixa uma viúva sozinha com o falecido; o mais normal seria à meia-noite, fecharem o "quiosque" e irem todos para casa.
Agora, distraído com todos estes pormenores, o final é um achado. Para mim , foi absolutamente inesperado, embora pense que o despedimento do narrador tenha sido um pouco sádico.
Gostei muito da frase "...Diabo precisa de cornos..." no contexto. Nem ao Diabo se lembra...
Mais uma vez obrigado pela partilha. Venha mais.
Muito obrigado pela crítica. Quanto ao conto, não me compete defendê-lo: agora que é adulto, aguente-se. Dito isto, agradam-me as reacções dos leitores, não raro algo intrigados e perplexos. Quem disse que uma só leitura bastava? Está lá tudo - ou devia estar; agora é com os leitores.
Sobre o sadismo do despedimento do Eleutério - de onde raio é que me saiu um nome desses? - só posso dizer que foi rigorosamente verídico, como, aliás, boa parte das histórias dessas 14 páginas. Como Camilo, "não tenho imaginação. Tenho memória".
Muito obrigado.
Zé
Já corrigi no original a confusão do "velório" e aproveitei as tuas ideias para titular o conto. Muito obrigado.
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