"... Então, o mais tardar na própria noite, procuram fazer as pazes, passando dos berros e das lágrimas à ternura e depois ao prazer, adormecendo nessas noites frias de Inverno enroscados um no outro como cobras, bem aconchegados sob cobertor de papa e mantas de trapos, enquanto a nortada procura friesta por onde entrar e a chuva tomba desalmadamente sobre as colinas, escorre pelas regueiras, inunda os chãos-de-horta, transforma regatitos em riachos furiosos, que tudo arrastam consigo — árvores, pontes de madeira, gado, pessoas até, como sucedeu à filha do Mouco, numa tarde em Cós.
(...)
E um dia, inevitáveis como o Inverno que a todos atormentava, apareceram os pescadores. Há meses que não podiam ir ao mar, a fome apertava. E apertava-se a garganta dos camponeses ao verem aqueles homens valentes, que não receavam mar e temporais, pedindo esmola por amor de Deus. Os cavadores, também eles impedidos pelo mau tempo de ganhar o sustento, comoviam-se e cada um dava o que podia: um punhado de batatas miúdas, das mesmas que a mulher cozia para os porcos, uma tira de toucinho, uma ou outra maçã ou passas de uva, figos secos, uma fatia de broa e, sempre, um copo de água-pé ou um rijo mata-bicho, aquecendo o corpo e queimando as tristezas, que, bem o sabemos, nem dão de comer nem pagam dívidas.
Então, abrigados nas adegas, ouviam os pescadores horas e horas a fio enquanto fora a chuva batia nas paredes, jorrava dos beirados, corria pelas ruas, fazia transbordar as regueiras, transformando tudo num mar de água. As conversas corriam soturnas como o tempo, recordando os entes queridos levados pelo mar na longínqua Terra Nova, na costa de Peniche, às vezes até junto à Nazaré, mesmo à vista das famílias. E partiam, as ceroulas de flanela arregaçadas pelas canelas, os pés descalços, por poças e atalhos, mendigando pelas aldeias que atravessavam, guardando nos sacos de serapilheira que carregavam às costas a pobre dádiva dos pobres, a quem também escasseava o sustento para si próprios e para os seus; partiam, levando com que mitigar momentaneamente a fome à família enquanto os homens da terra permaneciam nas adegas e arribanas ou iam para a taberna beber fiado.
Como pregoeiro do mau tempo, entoando na gaita-de-beiços a triste melodia do inverno, chegou o amola-tesouras, tentando atrair freguesas com o mesmo assobio com que na Primavera se oferecia para capar os porcos, os mesmos alforges na bicicleta, de onde agora extraía um esmeril para afiar facas e tesouras, alicate e arame fino para consertar as varetas de chapéus de chuva. Também para o galego os tempos estavam maus, calcorreando estradas alagadas e caminhos de lama, a bicicleta à mão, sempre debaixo de chuva inclemente, para ganhar um cruzado aqui, outro ali.
Chegou o cesteiro, instalando-se ora numa adega ora noutra, e habilidosamente entrelaçava vergas fazendo cestos onde as camponesas transportariam ovos ou fruta, poceiros para as uvas na vindima, poceiras para a fruta que venderiam nas praças de Alcobaça ou de Pataias, poceirões onde os burros carregariam o esterco para as hortas quando o tempo levantasse. Ao contrário da formiga, trabalhava de Inverno, mas só receberia mais tarde, talvez apenas no final do Outono: — Pago-te quando vender um casco de vinho..., ambos sabendo que o mais difícil é receber, seja a jorna ganha, seja o vinho vendido.
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O duro Inverno prolongou-se até finais de Abril, alargando constantemente o fosso entre ricos e pobres e multiplicando estes últimos, em boa parte à custa dos que tiveram até então uma pobreza remendada, apoiada numas courelas que lhes asseguravam alguma independência, mas que agora se viam forçados pela necessidade a empenhar ou a vender por tuta-e-meia.
As geadas queimaram as batatas novas; o feijão e o milho não medravam, antes pareciam definhar, amarelentos; o granizo, a que cá chamamos pedraço, destruiu boa parte das uvas e o míldio devastou as vinhas, apesar das pulverizações constantes com calda bordalesa, que a chuva prontamente lavava. Faltava a lenha e os cavacos encharcados que podiam conseguir nos pinhais eram ciosamente guardados pelos donos, que, em vez de agradecerem a limpeza gratuita que as mulheres faziam às matas, retirando com longas varolas os ramos secos, carregando a caruma e as pinhas para atear o lume, o tojo para chamuscar o porco, se as apanhavam em flagrante delito exigiam pagamento da carga, como se tivessem com quê, aproveitando, se estivessem sozinhas, para sugerir que então pagassem com o corpo. (...)"