O meu pai, sempre aventureiro, emigrou, tinha eu os meus doze anos. Antes, numa linda tarde outonal, à porta da adega, enchi-me de coragem e atrevi-me a tentar dissuadi-lo. Os riscos. A língua. A nossa pobreza. Se valeria a pena tentar a sorte nessa Holanda longínqua e desconhecida, para onde o passador lhe arranjara papéis, em vez da França, para onde todos os outros iam. Para minha surpresa, não me ralhou, antes me ouviu como se eu fosse adulto -- sempre se orgulhou de mim, mas disso só me apercebi mais tarde.
Não nascera para agricultor. Ia à aventura. Se não resultasse, que o pusessem na fronteira quando o dinheiro se lhe acabasse. Toda a vida arriscara. Pouco tinha a perder.
E uma noite partiu, velha mala de cartão na mão, apesar dos meus protestos: -- Lá deito-a para o lixo.
Ansiosamente aguardávamos as suas cartas. O sofrimento atroz desses tempos em país estrangeiro, de língua incompreensível, inverno inconcebível, o dinheiro a acabar, o companheiro de aventura a regressar derrotado, as vigarices dos patrões que lhe não pagaram, as vezes em que chorou -- só muito depois o contou. As cartas chegavam às duas, três por semana, pelo Natal veio uma com folha de químico azul a esconder nota de dois florins e meio para os filhos, coisa de vinte escudos. Sobrevivemos com parcimónia indescritível, amenizada com a venda dos dois porcos, das batatas. Nos piores momentos, quando a minha mãe desesperava, a minha avó, a viver connosco por viuvez, convencia-a a carregarem a burra com o que havia na adega, o que a terra ia dando, couves, grelos, cebolas, alhos, feijões, e a seguirem para o mercado de Pataias, caminhada de quase dez quilómetros, a fazerem alguns escudos para o governo da semana.
Um dia, a carta contava que o meu pai tinha prestado provas para as oficinas da KLM, a companhia de aviação holandesa; e depois, a grande notícia: entrara.
A nossa vida melhorou. Com viagens de avião a preços irrisórios -- creio que pagava cinco por cento do bilhete -- passou a ser visita regular, a quem os poderosos do concelho pediam o favor de trazer garrafa de uísque, então caríssimo entre nós, gravador ou, os grandes figurões de Alcobaça, que o conheciam dos seus tempos de padeiro e confiavam na sua discrição, filmes pornográficos, quase inexistentes entre nós.
E eu, que reprovara no curso de Serralheiros, finalmente convencido de que não tinha hipóteses nessa área, saí de casa aos treze anos e fui para Leiria fazer o Curso Comercial. Assim se acentuou a minha solidão, a viver como hóspede em casa estranha, em plena crise da adolescência -- nenhuma é fácil, menos o foi a minha, sempre avesso a facilidades -- em meio desconhecido, citadino, de costumes bem diferentes dos meus, rústicos e brutos.
Uma vez por mês, ia a casa, curto fim-de-semana, pois a camioneta gastava quase um dia, entre viagens e mudas, a percorrer os trinta quilómetros. A minha mãe primeiro, os meus irmãos depois, crianças de cinco de dez anos, juntaram-se ao meu pai, e só em Agosto voltávamos a ser família.
Duros tempos, que recordo agora, após conversa com amigos que tentam a sorte por esse mundo fora, na penosa vivência da emigração, mal suavizada pelo Skype.