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quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Testemunhos de leitor



Aos seis anos, antes do Natal, já a professora me punha de frente para as quatro classes, a ler o jornal, para assombro de matulões e matulonas, obrigados a frequentar a escola até aos catorze anos, se antes não concluíssem a quarta classe. Entrei com cunha do meu pai, para não ficar todo o dia sozinho em casa, e algumas das minhas recordações mais antigas são leituras dessa época, no suplemento Ria Connosco, do Diário Popular, como a de uma sereia, que então muito me intrigou. Não continuei durante muito tempo a ser o menino bonito da professora: pouco depois, parti uma cabeça com garrafada e acabou o meu estado de graça. O que pouco me importou. Sabia ler e devorava tudo o que encontrava com letras, os dois ou três livros que havia em casa, os outros nas bibliotecas itinerantes Calouste Gulbenkian. Lia às escondidas, nas aulas mais chatas (para mim, quase todas, excepto Português, História, Ciências), à noite, em casa, quando minha mãe me supunha a estudar fervorosamente -- a ocasião em que me apanhou dará outro post.
Em Leiria, para onde fui frequentar o Curso Comercial aos treze anos, era cliente diário dos quiosques que vendiam a 15 tostões livros usados e os voltavam a comprar por 10. 
Foi então que tive orientação mais consistente e vivi aquilo que considero ser a promoção ideal da leitura. Contá-lo é, antes de mais, exprimir novamente a minha gratidão a essa professora, Margarida de Carvalho, que nunca mais vi e nem sei se viverá ainda.
O sistema por ela implementado era assaz simples: não havia funcionários na biblioteca, a própria responsável (e professora a tempo inteiro) nos recebia: -- O que é que já leste? De que é que mais gostaste? Porque é que não gostaste? Que queres ler? Ah, sim? E porquê? Mas antes vais-me ler este, quando acabares conversamos e depois veremos se estás em condições de ler esse que queres.
A rebeldia da adolescência levava à biblioteca alguns que nunca, nem antes nem depois, leram nada, para provocadoramente pedirem livros que a professora entendia serem ainda inadequados. E eles: Assim não levo nada, se não me deixa ler o que quero. Depois queixavam-se da tirania da bibliotecária ao director de curso, até ao director da escola, se a ocasião se proporcionava. 
Graças à sua orientação, evoluí dos Cinco, Hornoblower e Sandokan para leituras que ainda hoje recordo (A expedição da Kon Tiki, À margem do tempo...), aprendi a apreciar a ficção científica e maravilhei-me com Simack, Bradbury, passei por Pearl Buck, devorei tudo o que por lá havia de Steinbeck, Hemingway, conheci Brecht, impressionei-me pela primeira vez (muitas outras se seguiram) com O Estrangeiro...
Só tive notícias desta professora no pós 25 de Abril: os alunos tinham conseguido saneá-la do cargo. Motivo? "Não nos deixava requisitar os livros que queríamos, pedíamos uma coisa, mandava-nos ler primeiro outra. " 

5 comentários:

Reinaldo Amarante disse...

Curioso como tivemos percursos muito semelhantes. Também passei pelos Cinco (antes era O Cavaleiro Andante, o Mundo de Aventuras e outros quadradinhos). Quando conheceste Brecht, eu iniciei timidamente alguns autores portugueses mal quistos do regime: Soeiro Pereira Gomes, Vergílio Ferreira, Miguel Torga, Manuel da Fonseca e Ferreira de Castro.
Dizem as más-línguas que o atual Pr.da CME, quando foi proposto o nome de Soeiro Pereira Gomes para uma rua do Entroncamento, teria dito: "Soeiro Pereira quê? Quem foi esse gajo?...". (Não teve a tua professora).

JCC disse...

A nossa geração teve percurso idêntico e mesmas leituras: não havia muito mais, pelo menos nas bibliotecas. Lembro-me de que quando saiu O Macaco Nu liderei uma comissão que foi pedir ao director que autorizasse a compra para a biblioteca. Prontificou-se a emprestar-me o livro, mas não o podia comprar para a biblioteca , que receava o padre, Vieira da Rosa de seu nome.

Anónimo disse...

"À Margem do Tempo..." não conheço, nem descubro na net. É o quê?

JCC disse...

Creio que é esse o título. Pode haver alguma pequena incorrecção, bem como no nome do autor, Michel Chiffre. É que já lá vão uns bons quarenta e cinco anos. Era uma espécie de diário de um espeleólogo, que permaneceu isolado numa gruta durante uns meses numa experiência. Como sempre me senti eremita, fascinou-me.

Anónimo disse...

Voilá: http://fr.wikipedia.org/wiki/Michel_Siffre