O Tóino brinca pacífico à porta de casa. E eu a gritar-lhe, preparado para fugir ladeira acima:
-- Eh bucha! Não me apanhas, não me apanhas, gordo de merda!
Ele ainda me persegue. Mas depressa se cansa, volta atrás esbaforido, a vociferar ameaças:
-- Ah, quando te agarrar, eu faço, eu aconteço....
À noitinha a minha mãe manda-me fazer recado: -- Vais a casa da avó da Luz...
Tinha de passar pela casa do Tóino.
-- Não vou, tenho medo...
-- Medo de quê, se ainda é dia? Toca a andar, seu medricas!
Cheguei a casa da minha avó ofegante, coração aos coices, da rápida corrida para evitar maus encontros. Mas no regresso, lusco-fusco, o malandro pegou-me de emboscada:
-- Desta é que mas pagas!
E agarrava-me por uma orelha, esbofeteava-me, -- Vá, chama-me agora bucha!
Eu choramingava, entre lágrimas e ranho: -- Vou dizer à minha mãe... É tanto me contorci e berrei que consegui libertar-me. Apenas me afastei três pulos, -- Ranhoso, bucha, és só banhas, paneleiro de merda! -- nem sabia então o que era isso. E ele, a quem a fúria dava asas, quase a apanhar-me outra vez, perseguia-me até casa, a rosnar ameaças espumadas: -- Agora é que as levas a sério, dou-te coça que te vai servir de emenda!
A chinfrineira atrai à porta a minha mãe. -- Que guerra é essa, vamos lá a parar com isso!
-- É este bucha que me bateu e quer bater-me mais!
-- Não admito que me chames bucha!
-- Alguma lhe fizeste!
-- Eu? Vinha a passar de casa da avó, agarrou-me de surpresa, começou a bater-me...
-- Porque tu esta tarde chamaste-me nomes!
-- Eu? E para a minha mãe: -- Que eu seja ceguinho...
A minha mãe estava brava. Um marmanjo daqueles -- bucha, gordo, ia eu dizendo, já agarrado às saias dela -- a bater no seu filhinho, criança indefesa, "relezica", e sem quê nem porquê.
-- Pois a tua mãe vai sabê-las e é agora!
Eis que as nossas mães ralham, a do Tóino que não aguenta mais ouvir a garotada a atentar-lhe o filho, que só quer brincar sossegado, a minha que nomes não fazem sangue nem marcas como as que tenho na cara: -- Ora veja-me lá o que o seu filho me fez ao garoto, acha bem?
-- E você acha bem que o seu lhe chame gordo?
-- Pois se o é!
Era, mas de doença! E doenças não se atiram à cara.
-- Doença? Vossemecê até conta por aí: "O meu Tó é uma boquinha abençoada, come uma dúzia de sardinhas de cada vez!"
-- Ora, o que come ou não come é comigo. Felizmente posso dar-lhas, não sou como umas e outras que têm de dividir uma sardinha pelos filhos.
-- Pobre, mas honrada, ouviu? E que o seu filho que não torne a bater no meu!
-- Ora, o seu que lhe não chame nomes! E fecha ruidosamente a porta de casa, farta da peixarada.
No caminho de casa, levo reprimenda forte: -- Ai de ti se eu sei que o voltas a provocar! Quem vai, vai, quem está, está.
-- Eu, mãe? Ele é que me bate primeiro...
-- Se não podes com ele à unha, chega-lhe à pedrada! Não te venhas é queixar para casa!
Pois sim. Mal saía da escola, atirava a mala para cima da mesa, enchia a boca de torrões de açúcar e corria escadas abaixo antes que a minha mãe me impedisse. Ainda me gritava da janela: -- Onde vais? Já fizeste os trabalhos de casa? Merenda primeiro!
-- Vou brincar, depois faço-os. Não tenho fome, como depois...
Lá estava o bom do Tóino a brincar pachorrento à porta.
-- Eh gordo! Bucha de merda, paneleiro! Não me apanhas! Não me apanhas!
E ele outra vez a espumar ladeira acima: -- Vais ver a coça que te dou quando te agarrar! Ainda te faço pior do que ontem!
-- Ó mãe, o bucha quer bater-me outra vez! grito, ele olha em volta, detém-se por um instante, o bastante para me pôr a salvo em casa, galgando de pulo as escadas.
-- Vieste a fugir de algum? E a minha mãe, desconfiada por me ver chegar bofes à boca, deita mão a verdasca justiceira.
-- Eu, mãe? Vim a correr para fazer os trabalhos da escola!
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