De todos os mistérios da vida moderna, o que mais me intriga é a moda da agricultura biológica. Nascido no campo, descendente de gerações de camponeses pobres, nunca consegui ver na agricultura o maná que agora apregoam. Antes sempre fiz minhas a as palavras daquele papa, Pio não sei quantos: "Há três maneiras de um homem se arruinar. Ao jogo, com as mulheres, com a agricultura. O meu pai escolheu a mais trabalhosa." (Já agora, o meu também. E morreu debaixo do tractor...) Depois, ouvi, li. Que a maior parte dos solos do nosso país não tem aptidão agrícola; que o relevo dificulta ou torna inviável a mecanização; que o clima, quase imprevisível, é uma ameaça permanente. Que sem financiamento...
Pois olho para a televisão e lá estão os profetas da novíssima revolução agrária — a agricultura biológica. Como os adeptos das novas religiões, não se contentam em acreditar, querem persuadir todos os outros de que há um mundo de oportunidades em cada recanto de urtigas, em cada silvado, em cada terra inculta. E trazem consigo um mundo de promessas, de certezas, numa área onde sempre predominou a incerteza da chuva, do Sol, das pragas, do escoamento dos produtos a preço compensador.
Escuto-os com atenção. Um cavalheiro jovem, bem falante, cujas mãos negam ter alguma vez pegado num cabo de enxada, numa tesoura de poda — ou não estariam assim mimosas, esguias, de unhas irrepreensivelmente cuidadas, a indiciar cuidados de manicure. Três jovens senhoras, branquinhas de cera como ele, por cujas faces nunca passou o quente Suão, a agreste nortada, os ventos carregados de água que fustigam o rosto como agulhas. A agricultura é agora actividade de salão?
Fico à espera de respostas: que é preciso para uma família sobreviver nessa agricultura? Que rendimento pode esperar, por mês, por hectare, ou por cabeça? Como fazem para que o regadio chegue às culturas, como as defendem das pragas, dos coelhos, dos javalis, das geadas inesperadas, das vagas de calor, das semanas de chuva constante em que tudo apodrece? Pagam impostos? Os filhos frequentam a escola? De onde lhes vem o dinheiro para as alfaias, as reparações e manutenções mecânicas? Têm assalariados quando o trabalho urge e não conseguem dar conta do recado?
Muita conversa, nada que me esclareça. E começo a suspeitar de que o negócio possa ser outro. Vender o produto. Dar formação, fazer cursos, talvez para desempregados. Eventualmente, receber subsídios...
Agoiro. Se assim for, como ficaremos quando os subsídios acabarem, que lá diz o povo, não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe? Ou os mercados saturarem. Ou, faltos de rendimento decente e seguro, aqueles que agora pegam na enxada desistirem da salsa, da segurelha e da hortelã?
Mas isto são apenas cogitações de Velho do Restelo, desconfiado de milagres, farturas e facilidades. Que viveu sem electricidade, sem água canalizada, sem saneamento básico, sem papel higiénico, a comer um pouco de carne nos dias de festa, nesses em que talvez houvesse gasosa ou laranjada para as crianças. Que não gostaria nada, mesmo nada, de voltar a viver nessa penúria cruel. E que não consegue imaginar como sobreviver, como sustentar família, com o produto da venda de ramos de ervas aromáticas, umas alfaces, couves, algumas cebolas ou tomates, ou batatas, conforme a estação.
Também eu defendo a produção nacional, o cultivo dos campos, a ocupação das gentes desempregadas. Poucas coisas me agradam tanto como o amanho da terra. Que não dá férias, nem dias de descanso. Que se não compadece com idealizações. Por isso me irritam os vendedores de ilusões. Que parece não dizerem aos candidatos a agricultor que o trabalho no campo é duro, ingrato, fedorento, porco, estraga as mãos, envelhece precocemente — e todo o investimento de uma vida pode ser perdido numa única noite de temporal, ou num desses incêndios em que o nosso Verão é pródigo.
FOTO: dez anos atrás, na sacha das batatas. Pois este belo batatal foi completamente destruído pelas geadas poucos dias depois. Assim é a agricultura...
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