— Para a semana, lá vai o gajo!
E lançou em voo cana, a imitar o avião em que partiria para a América.
Pois um dia o gajo voltou, a férias com a família. Ele transmudado em adolescente gringo, no vestir, nos modos, nos interesses. Esquecera por completo as amizades de criança, olhava com desprezo para a nossa pobreza, que fora a sua até aos cinco anos. Naquele tempo, em que na aldeia as mulheres cobriam as tranças com lenços, e pouco mais descobriam que as mãos calejadas, as unhas sujas, as canelas peludas, os pés encardidos do pó dos caminhos, a irmã, mais velha, género boazona, deslumbrava a rapaziada com os seus decotes generosos, hot pants reduzidos a expor pernas depiladas, tentadoras coxas bronzeadas que enlouqueciam a rapaziada, a sonhar abri-las. (Ah, não tivessem arrancado as vinhas, e elas poderiam contar das inúmeras punhetas por lá batidas em sua honra por chusmas de rapazes augados!) O pai, que partira cavador, terceira classe feita, trajava agora como turista americano, sapatilhas e meias brancas, calções de cáqui, chapéu de palha, máquina fotográfica reflex a tiracolo. Contavam as velhas que o encontravam meditativo no cruzamento de caminhos, a tirar fotos a coisas sem jeito nenhum, ou a escrever em caderno que sempre o acompanhava. No adro da igreja os homens escutavam-no curiosos: na América, lia vários jornais por dia...
— Portugueses? Há lá jornais portugueses?
Haver, havia. Mas ele apenas lia os ingleses. Porque nos portugueses era só quem tinha nascido, quem tinha sido batizado, quem tinha morrido...
Crescia o espanto nos olhos dos ouvintes, também eles a suspirar por quem lies enviasse carta de chamada para largarem as enxadas e partirem para esse Eldorado, onde se entrava cavador analfabeto e se vivia como lorde letrado. Só eu duvidava de tal proficiência linguística, que na véspera ouvira a mulher, a única da família que se preservara barroa, a contar à minha mãe, após se assegurar de que não havia homens por perto: — Sabes como é que se diz saia em Inglês? Acena a minha mãe negativamente. E a americana, triunfante: — Cona! Pois vê tu, e ria perdidamente, que aquelas cabras andam com a cona à mostra!
É de ternura o sorriso com que recordo estes pequenos nadas da infância, paradigmas daquilo que fomos, daquilo que somos. Pobre país de ludíbrios, de mistificações, de mentiras, em que nos cobrimos de ridículo a fingir ser aquilo que jamais seremos, talvez para esquecer que a vida é cana lançada em breve voo, depois — Lá vai o gajo!
3 comentários:
Lembra-me este trecho, a anedota já velhinha, do casal que sai da aldeia, pobre, emigrando para França e regressa de férias dois anos após, rico. No largo da aldeia, encontram o avô amparado na sua velha bengala. Param o audi topo de gama, comprado em 2ª mão, como novo, saem do carro todos pimpões, dirigem-se ao velho e com ar de gozo perguntam: então avô, já não nos conhece?
O velho, pisca, olha demoradamente o par e por fim anui: conheço pois; são a Adosinda e o Toino, mas estão muito diferentes. O casal rindo desbragadamente, confirma: Pois somos avô! Vocemecê já não nos conhecia porque nos viu sair daqui com uma mão atrás e outra à frente e agora voltamos ricos.
Depois de mais uma pausa prolongada, de olhos colados ao par, responde o avô: estou a perceber, então quer dizer que chegados à frança, a Adosinda tirou a mão da frente e tu, tiraste a mão de trás...
Amigo Bartolomeu, dantes andávamos com uma mão à frente, outra atrás. Hoje andamos com elas estendidas à caridade da troika e dos seus mercados, a mando dos seus sátrapas.
É inteiramente verdade, num passado ainda recente, foi essa a realidade da maioria que emigrou e quase todos, como o casal da anedota, conseguiram contrariar a expressão de "uma mão à frente e outra atrás". No entanto, raros são os casos daqueles que souberam valorizar o esforço, empregando o pecúlio de forma a rentabiliza-lo e não a exibi-lo. Mas isso são decisões particulares sobre as quais não me compete "botar letra".
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