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terça-feira, 16 de agosto de 2016

1972

Excerto de um inédito meu. Porque me apetece.
"Aquela tarde  de Dezembro de 1972 devia ser igual a tantas outras que a cidade já conheceu desde que Salazar impôs a sua ordem ao país, e o adormeceu como criança ao colo materno, que no conchego esquece os peitos secos, e se não agita a medo de forte palmada, ensinada desde o nascimento  que, se escasseia a comida,  sobeja a porrada para quem reclama.
Esta substituição da comida pela pancada está tão enraizada nas mentalidades que já entrou na língua: é o gaiato que na escola ameaça colega "lá fora tu *comezas*!", e não tenciona repartir o farnel, antes quebrar a cara do infeliz, seguramente mais pequeno, porque, eis outra virtude nacional, espancam-se os mais fracos e bajulam-se os mais fortes, é a mãe que carinhosamente previne o filho após patifaria insignificante, "Vais ver a carga de cachaporra que *comes* quando o teu pai chegar a casa" -- até na capital, de falares mais finos, mais polidos à superfície, se diz das ordens do governo, das leis, das ordens do patrão, por mais abstrusas que sejam: "é *comer* e calar!"
É este o nosso Portugal conformado. O do "come e cala-te", em que se *come* sofrimento, adoçado embora pela linguagem metafórica, pelo que não espantará ouvir camponesa na feira responder a filho que, olhos aguados, lhe choraminga "Mãe, compre-me um bolo!" "Compro-te mas é uma pouca de merda!", isto porque a merda, fedorenta, pegajosa, colou-se não apenas às línguas, mas também às mentalidades —"Este país é uma merda!".
Dois verbos, *comer* e *calar*; um nome, *merda*. Três palavrinhas que resumem o salazarismo e delas  deriva  tudo o mais: o silêncio resignado; a miséria de um povo descalço, a subnutrição, o analfabetismo, a violência animalesca contra os mais fracos. O medo. 
Por isso, naquela  tarde de sexta-feira, chuvosa, tristonha, apenas se deviam ter visto autocarros e eléctricos apinhados de trabalhadores a caminho de casa, fartos da merda do emprego, cansados da merda da vida, parados na Baixa, no Martim Moniz, na Praça da Figueira, no Terreiro do Paço, pela merda dos automóveis de uns merdas engravatados que compram carros a prestações para  entupir as ruas da cidade, e impacientes com os engarrafamentos, com as bestas que são os outros condutores, ainda buzinam infernalmente, interminavelmente, ou exasperados metem a cabeça de fora da janela a berrar "Cale essa merda, não vê que ninguém pode passar?", inconformados com esta injustiça social que os obriga a ficarem parados atrás dos autocarros onde antes viajavam!
Por todo o lado estalam conflitos, "Vá bardamerda!" "Vá você, seu malcriadão!" "Oiça lá, sabe com quem está a falar?", e o pretenso figurão exige a presença das autoridades, mas é sabido que estas só aparecem quando não fazem falta, e o cavalheiro olha em volta, desconsolado: "Quem me agarra, que mato aquele malandro?"
Ainda o não sabem, mas a polícia está ocupada mais adiante, um punhado de estudantes armou arruaça, bloqueou a Almirante Reis, em breve todos estes cidadãos, proprietários de automóvel ou desclassificados utilizadores de transportes públicos, uns e outros inocentes, pacatos, respeitadores da ordem, cumpridores da Lei,  ver-se-ão  envolvidos na  pancadaria, pois a polícia de choque quando carrega é como toiro bravo, também ela só vê pela frente o vermelho que a enerva, ai dos mais exaltados, esses que ciosos dos seus direitos de prioridade, garantidos pelo Código da Estrada,  exigem a presença das autoridades -- levarão umas boas cacetadas, um ou outro será detido e levado para os calabouços do Governo Civil, enquanto a malandragem que armou o desacato escapa por entre as malhas policiais como as ratazanas pelas sarjetas da cidade."

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