Longo. Fragmento de Um amor inventado (inédito), que surge aqui a propósito da chuva desta noite.
"Foi a meados de Agosto, altura em que o tempo muda e o calor do Verão é, por dois ou três dias, substituído pela fresquidão outonal. Começara a morrinhar ao cair da noite, e essa chuvinha molha-tolos, como uma cortina de água suspensa entre céu e terra, colava-se às pessoas, às árvores e às casas, tombando depois já reunida em grossas gotas, enlameando o pó dos caminhos, encharcando a terra, onde depressa desaparecia, sorvida pela sequidão dos campos. Uma nuvem de vapor desprendia-se amarelenta das lâmpadas de iluminação pública, inaugurada meses atrás, e unia céu e terra numa melancolia invernosa que fazia ansiar precocemente por castanhas e lareira. Dentro de dias o Estio voltará, mas, por enquanto, a tristeza deste interregno invernoso contagia a aldeia, encerra as famílias em casa, já ao borralho, a que só os rapazes resistem, trocando a monotonia doméstica pela conversa à porta da igreja, onde, mal abrigados da morrinha incessante, se apertam uns contra os outros, espremendo-se, empurrando-se mutuamente para a chuvinha miúda, soltando gargalhadas estrondosas, proferindo heresias, berrando besteiras e palavrões que, se não escandalizam Santa Marta, que os contempla enigmaticamente do alto do seu pedestal, incomodam a vizinhança, que jamais se habituará a estes pequenos desmandos da juventude de todos os tempos. Mais para a noite, dão uma corrida rápida até à tasca do Ameixa, a escassos cem metros, e por lá se deixam ficar até que feche, fazendo salão a troco de pouca despesa, para frustração do taberneiro que já devia ter percebido que jamais enriquecerá com clientes como estes. Pois não só não percebeu como instalou à sociedade, na semana passada, dois jogos de matraquilhos e ouve deliciado, como se fosse caixa registadora cantando de alegria, o som da introdução das moedas, o matraquear das bolas que saem de roldão para iniciar novo jogo. Desiluda-se: quando, no final do mês, na presença do proprietário, abrir as caixas dos jogos encontrará, em vez do esperado montão de moedas de dez tostões, anilhas e caricas espalmadas...
Começam a rumar para casa, primeiro os mais supersticiosos, receosos de que a meia-noite traga ordem de soltura para o sobrenatural, depois abalam os outros, ao verem-se sem companhia e porque amanhã é dia de trabalho; por fim, saem os bêbedos, quase postos na rua pelo taberneiro, que entende serem horas de ele próprio ir descansar.
Depressa a chuvinha os empapa e eles estugam o passo, uns por medo, outros para fugir à molha, e entrarão nas casas ou nos palheiros onde dormem, fechando aliviados atrás de si a porta que os isola do outro mundo e deste, agora pouco agradável. Deitar-se-ão e adormecerão imediatamente, exaustos de um longo dia de trabalho, não ouvindo já o cantar dos galos que, sem que se saiba como, marcam agora o início, mais tarde o fim, do período em que as coisas do Além podem atentar os vivos. Pouco depois, a aldeia dorme sossegada, perturbada talvez por ronco mais forte aqui, por gemidos amorosos ali, por briga feia além, entre casal desentendido, talvez porque o homem chega sempre bêbedo a casa...
É então que o sino toca freneticamente a rebate, tlim, tlim, tlim... Fogo!, arrepia-se o João e salta em ceroulas até à janela e olha em volta; não, não há labaredas nas imediações, ameaçando a sua casa; mais calmo, chega à porta, ao mesmo tempo que os pais e a irmã, todos ansiosos, sabendo que, como diz o povo, o fogo é pior do que um ladrão, pois não se contenta em roubar, tem de destruir tudo por onde passa; a mãe, mais experiente, aperta o lenço à cabeça e corre já, balde na mão, enquanto o pai vai à adega procurar enxada, que nas mãos de um homem serve para combater tudo menos o mau-olhado; só a irmã, consciente das suas limitações de rapariga, fica em casa e o despacha, com a incumbência de a vir avisar se o fogo se aproximar.
Pela rua abaixo, mulheres gritam, correm homens e rapazes, perguntando uns contra os outros onde é o fogo; e uns afiançam que é na Charneca, porque o povo se apressa nessa direcção, outros gritam que é no Outeirinho, o clarão do incêndio parece vir de lá, e todos acorrem feitos um rio humano que quer dar combate ao inimigo antes que ganhe forças e devaste a povoação. Logo avistam, subindo do tear, labaredas medonhas que cortam a chuvinha e a negrura da noite, rolos de fumo que descem asfixiantes, envolvendo os gritos de medo, de desespero, de incentivo, cada qual querendo ser o primeiro, e eis mulheres que acorrem, umas carregando baldes nas mãos, outras canecos e almudes à cabeça, enchidos no poço mais próximo, felizmente logo do outro lado da rua, eis homens valentes que entram pelo tear adentro, protegendo com boinas e bonés a face das chamas que lhes chamuscam cabelo e barbas por fazer, e eles deitam abaixo barrotes e madeiros inflamados, e eis que o telhado ameaça desabar e gritam, — Fujam, fujam, que morremos aqui, prontamente todos recuam, e é com a raiva da impotência que vêem as chamas tomarem conta do negócio do dono e do emprego certo de uma dúzia de mulheres. Ah, mas não vão ceder, pelo menos sem luta árdua, e mal o telhado desaba, atiram-se novamente para o brasido, pisam-no com as fortes botas de cavador, lançam terra com as enxadas, despejam baldes e canecos que as mulheres lhes passam, e a água prontamente estruge, guincha, evapora-se em rolos de fumo. É então que o Abel chega com um motor de rega, rapidamente se estendem as mangueiras, se ferra o chupador e, após esforços para o fazer pegar, a água jorra em abundância e as chamas recuam, aliviando o povo que aproveita para respirar um pouco e endireitar as costas, já de si doridas de toda uma vida de enxada.
— Ah, o progresso!, comenta-se, vendo como uma única máquina desenvolve mais trabalho do que uma multidão exausta, mas pouco depois o motor tosse, engasga-se, a preocupação espelha-se em todos os rostos, parece que vai parar, — Que será? Falta de gasolina?, e prontamente, não imagino saída de onde, surge uma lata de combustível, mas, na quase escuridão, atabalhoados, nervosos, não acertam com o bujão do motor, e é mais o líquido entornado do que o que entra no reservatório. Logo, logo, o Gamela teve ideia luminosa: acendeu um fósforo e chegou-o ao depósito para que vissem o que faziam. Foi um estoiro. Aqueles que atestavam o motor foram lançados a metros de distância, tombando chamuscados, alguns com o cabelo ou a roupa a arder, não sei se da gasolina inflamada, se da raiva que os consumia; outros, mais afastados, dando vazão ao sentimento justiceiro do povo, expulsam dali o rapaz à força de sopapos e de pontapés no traseiro, e ele, lesto, esgueira-se, as atenções momentaneamente distraídas com o uivo da sirene dos bombeiros que finalmente chegam e depressa extinguirão o incêndio — afinal, já quase tudo tinha ardido naquele barracão.
Aliviados, regressam aos poucos a casa, ainda lentamente, olhando frequentemente para trás, tossindo devido à fumaça que o rescaldo elevou e agora envolve a povoação, sempre comentando uns com os outros que podia ter sido bem pior se não tivessem evitado que o fogo chegasse às casas próximas; é agitados que se deitam novamente e por isso demoram a adormecer, apesar de a noite decorrer agora sossegada, sem roncos, nem gemidos amorosos, nem ralhos, apenas ao longe o ruído grave dos motores que inundam o tear, entrecortado pelo ladrar à desgarrada dos cães acorrentados nos quintais, alvoroçados pela agitação, incomodados por carraças e solidão."