Foi ontem o padre chamado ao bispado e recebido gelidamente, sem que soubesse o motivo: tudo corria bem na sua paróquia. Até que bispo o convidou a ver um filme no computador. Lá estava ele, o vigário de Cristo, nu como veio ao mundo, em práticas lascivas, quiçá contra-natura, com a Piedade! Ah, conseguisse também ele morrer, já, de vergonha, como a Maria, no Frei Luís de Sousa! Morrer para evitar responder à pergunta do bispo:
Que me diz a isto, padre?
E ele, a cabeça caída, escondida entre as mãos, lavado em lágrimas, só conseguir articular: Perdoai-me, padre, que pequei!
Nenhuma dúvida quanto a isso. O que queremos saber é o que vai agora fazer. Porque, assim dizia a mensagem que acompanhava o vídeo, também vai ser enviado para os seus paroquianos.
Ficou mudo por instantes. Depois, falou. Ia tentar compor as coisas com o menor prejuízo possível para a Igreja. Tentaria que a autora do filme, se ainda o não tinha enviado para os paroquianos, e talvez não tivesse porque lhe não convinha expor-se publicamente naquelas cenas íntimas, não fosse mais além na sua divulgação. Se o que queria era neutralizá-lo, destruí-lo, já o tinha conseguido. Isto porque lhe tinha revelado crimes tenebrosos no segredo da confissão e quereria assegurar-se de que ele, padre confessor, os não revelaria jamais.
Depois, havia a sua situação, afinal o menos importante. Qualquer decisão do Sr. Bispo seria acatada, seria escrupulosamente cumprida, sem reticências, nem protestos, nem público escândalo — expulsão, transferência...
Bom, o mal estava feito. Agora, havia que minimizar os estragos, não por causa dele, padre indigno, mas para não manchar a imagem da Igreja. O que poderia ser conseguido se a amante não divulgasse o vídeo. Quanto ao resto, impunha-se confissão, arrependimento, penitência. E outras medidas que seriam oportuna e discretamente tomadas. A seu tempo. E, desnecessário insistir nesse ponto, fim imediato de todas as práticas sexuais, de todo e qualquer encontro com a amante. Que procurasse outro confessor.
Voltou, portanto, pela última vez a casa da Piedade.
Gostou do filme, Sr. Padre? — perguntou, sarcástica, quando lhe abriu a porta.
Ainda mais vermelho ficou. Se podiam conversar. Ela deixou-o entrar.
Ei-los na sala, não abraçados no sofá, mas frente a frente, cada qual do seu lado da mesa.
Diz-me por que o fizeste, o que queres de mim, até onde estás disposta a ir... Para quem mandaste já o filme?
Por enquanto, só para o senhor bispo.
O que queres para não o enviares a mais ninguém?
Ela ria, a cabra, de satisfação por ver a angústia do padre, por ter nas suas mãos esse hipócrita, que a não achara digna de absolvição, nem penitência lhe dera, mas se deleitara com o seu corpo, com as coisas que ela lhe fez, com as coisas com que ele retribuiu! Boa para amante, indigna de salvação!
O que quero? Para já, nada. Tenho os meus podres, o Sr. Padre — e disse-o em tom irónico — tem os seus, nenhum de nó vai denunciar o outro, pois não? E ria, satisfeita.
É tão fácil domesticar os homens! Tê-los na mão como fantoches do teatro de marionetas!
Vá, vá à sua vida, vai cuidar do seu rebanho, confessar as suas velhotas, dê-lhes penitência que as redima dos seus pecados, esqueça-me, esqueça-se do que lhe disse no segredo da confissão!
E, sempre sorridente, amável, empurrava gentilmente o padre para a porta, com a mão tapava-lhe a boca, atalhando os protestos, abreviando as delongas.
Voltou a encontrá-la noutro funeral de velhota do seu lar, face humedecida pelas lágrimas, a consolar o filho pela perda: Deixe lá, sei que lhe custa muito, mas é melhor assim, Deus sabe o que faz, a sua mãe já só cá andava a sofrer, não tinha alegrias nenhumas! Eu sei, sofremos tanto quando partem as pessoas que amamos! Eu também, pois, embora só tenha conhecido a sua mãe quando foi para o lar, depressa me afeiçoei a ela, tão boazinha que era! Olhe, ultimamente, têm-me morrido tantas!
O filho da defunta, agradecido à mulher que tanto carinho dava à mãe, como ele via em cada uma das visitas, escassas, apressadas, distraídas, tenta consolá-la: É o nosso destino... Morre-se mais com o cair da folha...
Pois sim, mas o sofrimento era escusado! Que a sua mãe apagou-se como um passarinho, quando a fui ver às quatro da manhã parecia dormir sossegada, foi a minha colega, ao levantá-la para a arranjar para o pequeno-almoço, que deu com ela morta!
E levanta os olhos lacrimejantes para enfrentar, sardónica, o olhar de reprovação do padre, chegado para oficiar a missa de corpo presente.
FIM
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