— E agora, Piupiu, que vai ser de ti, sem poderes voar, para fugir dos nossos inimigos, que tantos são, como nos podes acompanhar na migração para África, que se aproxima?
Choram abraçados, a asa materna por cima, a proteger o Piupiu. Mas lágrimas não lhe podem salvar a vida. A conselho da mãe, arrasta-se até junto do grande pinheiro manso, a que na terra chamam pinheira, por vendo-a arredondada, a julgarem feminina.
De trás de uma roseira, espreita o olho matador de Tareco. Ainda não sabe que Piupiu está desasado, ou de um pulo já o teria apanhado. Caça e mata por vício, não por necessidade, que os donos não lhe faltam com a comida.
Avistando-o, a aproximar-se furtivo, a mãe afasta-se a correr pelo chão, para que o bichano a persiga a ela e não ao filho ferido, a quem grita que tente esvoaçar para a grande pinheira, onde estará a salvo do gato malvado.
Piupiu, por entre dores terríveis, salta, esvoaça, batendo forte a asa direita, e com grande sofrimento consegue alcançar o ramo mais baixo da pinheira.
Entretanto, Tareco salta sobre a andorinha mãe, tão rápido que parece impossível não agarrar a avezita. Mas a andorinha está atenta, e com o filho momentaneamente a salvo, levanta voo, escapando por um triz por entre as garras das patas dianteiras e vai pousar ao lado de Piupiu.
— E agora, mãe, que vai ser de mim?
— Sobe para os ramos mais altos e mais finos, onde o gato te não possa alcançar. Eu e o teu pai trazemos-te comida, esperemos que a tua asa fique boa antes da migração, pois, como sabes, não podemos cá passar o inverno, temos de ir para uma terra muito distante, chamada África, que fica depois do mar.
Nunca a jovem andorinha tinha ouvido falar no mar nem nessa migração. Mas não admira, tem poucas semanas de vida, aos pais, sempre a trabalhar para a sustentar e aos irmãos, falta o tempo para conversas e explicações inúteis — como a fruta, que amadurece no seu tempo, assim são as andorinhas, que sabem sem o saber quando é a altura de voltar, quando têm de partir. Para quê perder tempo com conversas e explicações, se sempre fazem o que têm de fazer, movidas por uma vontade superior, que desconhecem, mas a que são obrigadas a obedecer? Para elas, é tudo muito simples. É chegado o momento da migração, juntam-se à tarde nos fios em animadas conversas — Vamos então embora, vizinha? — Pois, lá terá de ser. E nem precisam de fazer as malas, apenas de bater as asas, elevar-se nos céus, rumar à casa de Verão ou de Inverno, guiadas sabe-se lá como, mas nunca erram, e é exactamente à sua casa, abandonada meses atrás que regressam, ei-las nos fios — Vizinha, a viagem foi boa?
— Fez-se... Encontrou tudo bem?
— O inverno fez alguns estragos na casa, eu e o meu marido já estamos a arranjá-la e a alcatifá-la.
— Teve sorte, a minha foi destruída!
— Não posso crer! Quem faria uma maldade dessas?
— Não vi, não posso jurar. Mas estou convencida que foi o dono da parede.
— E agora, comadre?
— Temos de fazer outra, de raiz.
— No mesmo local?
— Pois claro. Os outros já estão ocupados, e não queremos brigas com ninguém.
Compreende-se, pois, a aflição de mãe e filho. Quando chegar a hora da migração, terá de partir, mesmo que o filho a não possa acompanhar.
— Não tentes voar, a ver se a asa recupera depressa. Eu e o teu pai vamos continuar a trazer-te comida, esconde-te nos ramos mais altos e mais finos, onde o gato te não possa alcançar, repete.
Em baixo, Tareco observa cuidadosamente as nossas avezinhas. Lambe as patas, passa-as meditativamente pelos longos bigodes, concentrado que está em descobrir a melhor maneira de caçar a andorinha ferida. Também a ele o move uma vontade superior, que não compreende, mas o manda perseguir e matar animaizinhos indefesos.
Nasce-se gato, nasce-se andorinha, não se escolhe, e cada qual procede conforme a sua natureza, sem misericórdia nem remorsos. Por isso, Tareco, tendo estudado a posição e fraqueza da vítima, salta ligeiro sobre o tronco do pinheiro, com a ajuda das garras trepa veloz, sobe de ramo em ramo como se fossem degraus de uma escada, aproxima-se perigosamente do Piupiu.
— Cuidado com o gato! — grita a mãe, que levanta voo. Nada mais pode, por agora, fazer pelo filho, tem mais três para cuidar, aí vai ela, preocupada.
Piupiu corre pela braça, para tão longe quanto consegue do gato malvado, que continua a aproximar-se, cuidadosamente, lentamente — a presa está encurralada, não tem para onde fugir já que não pode voar.
É a morte que vê aproximar-se no focinho daquele gato, os olhos fixo em si, basta um salto e acabará entre os dentes do felino. Afasta-se o mais que pode, para as finas ramagens, que vergam sob o peso do Tareco.
Um salto, um pequeno salto, e terá a andorinha na boca, depois descerá com ela, cuidadosamente, para brincar com a avezita, soltando-a e quando já se julga livre, caça-a com um pulo, assim se divertirá vez após vez, até que a andorinha morra. Então irá colocá-la à porta de casa, como presente para a dona — que o não apreciará:
— O raio do gato só me traz animais mortos para o tapete!
O olhar aterrorizado de Piupiu, encolhido, cruza-se com o olhar assassino de Tareco. A andorinha despede-se desta vida, tão breve, em que nem chegou a conhecer o Mundo, nem essa África das migrações, nem o mar que é preciso atravessar para lá chegar.
Mas Tareco hesita. Analisa cuidadosamente a situação, pesa os riscos, avalia os ganhos, pondera as eventuais perdas: o ramo está alto, pode não se conseguir firmar ao saltar sobre a andorinha e cair desamparado no quintal acimentado. É certo que como todos os gatos, cairá de pé e diz-se que cada um tem sete vidas, mas não pode ter a certeza. O trambolhão será sempre muito doloroso. Ainda se em baixo estivesse a macia relva do jardim! Mas não, logo a danada da andorinha havia de fugir para este lado da pinheira!
Forte rajada de vento, que sacode violentamente o ramo, e quase o derruba, decide-o: a andorinha não vale o risco de uma queda no cimento ao caçá-la. Mas se ela tombar da árvore, ah, Tareco lhe passará os últimos sacramentos, na forma de dentadas, até acabar com ela. Cuidadosamente, volta-se para trás no fino ramo, fincando bem as garras para o vento e a agitação o não derrubarem, chega à parte mais grossa, já em segurança salta de ramo em ramo, desce em corrida pelo tronco.
Em baixo, fitando a andorinha, ainda paralisada pelo medo, rosna-lhe ameaça:
— Estou de olho em ti! Ficas para a próxima!
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