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sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

A andorinha desasada (3/6)

 Durante muito tempo, Piupiu continuou imóvel, mais morto do que vivo. Só reanimou quando mãe e pai o vieram visitar, com bichinhos no bico para o seu almoço.


Passaram as semanas. Nos fios da electricidade, as andorinhas conversam agitadas; mais uns dias, e terão de partir. E Piupiu?

Continua no pinheiro manso, vigiado pelo Tareco. A asa não sarou ainda. Qualquer tentativa de a mexer provoca-lhe dores insuportáveis. Os pais despedem-se, inconsoláveis: 

— Adeus, rico filho, que não te tornamos a ver! 

Choram eles, chora Piupiu, já que mais nada podem fazer. É assim a natureza, é este o destino das andorinhas, voar para Sul quando chega o Outono, morrer de fome e de frio se o não puderem fazer.

Nos fios em frente da casa, já nenhuma andorinha se empoleira. A solidão e a fome atormentam Piupiu, que nada mais faz do que chorar. E pensa, cada vez mais, deixar-se cair da árvore para o que gato ponha fim aos seu tormento. Só ainda o não fez por ver como Tareco tortura as presas, que morrem em grande e demorado sofrimento.

E o malandrete, todos o dias lhe recorda, enquanto solta e volta a caçar ratinho que julgava, talvez, ter conseguido escapar ao gato feroz: 

— Estou de olho em ti. Também cá hás-de vir parar!

— Pronto, está bem! É agora! 

E ia-se deixar cair, quando ouviu voz na sua cabeça: 

— Que vais fazer, meu tonto?

Olhou em volta. Ninguém. Nem sequer um dos pardais do telhado que às vezes se empoleiravam noutros ramos da árvore e nada lhe diziam. Que os pardais são muito sociáveis, muito conversadores, mas apenas entre eles. Nem os bons dias lhe davam, quanto mais perguntar-lhe pela saúde, pela asa doente!

De onde viria a voz? Respondeu-lhe com pensamento: 

— Nada me resta, os meus pais e irmãos partiram na migração com as outras andorinhas, eu não posso voar, morro de fome, quero acabar com este sofrimento inútil. 

— Não tens esse direito. Não escolhemos viver, não escolhemos morrer. Morres quando chegar a tua hora, mais nada.

— E como vou, entretanto, comer, sobreviver ao Inverno que, disseram-me as outras andorinhas, se aproxima?

A voz que ouvia na sua cabeça respondeu-lhe sem palavras, sem sons: 

— Consegues andar, consegues saltitar, podes percorrer os meus ramos... 

— Ah, percebeu Piupiu, era a árvore que lhe falava! Nunca tal tinha ouvido dizer, que as árvores falam nas nossas cabeças, mas não admira, que Piupiu é ainda muito novo, tem quase tudo para aprender. Tu, por exemplo, podes experimentar.  Sentas-te debaixo de uma grande árvore e tentas sentir os seus pensamentos. Demora, pois não estás habituada, mas com tempo chegarás lá. Voltemos à conversa do pinheiro manso: — ... podes percorrer os meus ramos e comer os insectos que me atormentam, ou outros que em mim vêm pousar. 

— Então, pergunta Piupiu, porque é que as andorinhas têm de partir para África? Podiam cá passar o Inverno, escusavam de correr tantos perigos, de ter tanta canseira!

— Porque, responde pacientemente a voz, a bichada que em mim encontrarás talvez seja suficiente para te impedir de morrer à fome, mas não chega para alimentar mais andorinhas. E quanto ao frio, que há-de chegar, pois lá dizem os homens “Ande o Inverno por onde andar, em Dezembro cá há-de vir parar”, e a chuva, e o vento, o granizo, talvez até a neve, pois vais sofrer com tudo isso, mas se te abrigares num ninho de pica-pau abandonado que encontrarás numa braça do teu lado direito, podes sobreviver.

Agradece Piupiu, com a esperança de volta. 

— Também é um favor que me fazes, ao livrar-me de parasitas, diz o pinheiro manso. Vais sofrer muito, mas a tua asa há-de melhorar, em breve poderás esvoaçar de ramo em ramo, já sem medo do gato. E pode ser que consigas chegar à Primavera, rever os teus pais!

Os dias foram minguando, as noites crescendo. Soprava feroz o vento, a chuva ora vergastava a árvore, ora caía como leve poeira a molhar tolos, as noites eram gélidas, por vezes até os dias quando o Sol não descobria. Piupiu, a asa já sarada, tiritava no ninho de pica-pau, roído pela fome, que com o mau tempo os insectos permaneciam, também eles, escondidos nos seus abrigos. Imaginava então pais e irmãos atarefados, alegres, nessa quente África, papos cheios — tê-lo-iam já esquecido, ou dado como morto, como teria sucedido se o pinheiro manso o não tivesse ajudado, proporcionando-lhe abrigo, comida, companhia na sua solidão, preenchendo os tristes dias do Inverno com animadas conversas, para o animar e instruir?

E depois os dias começaram a crescer: “Janeiro fora, uma hora, e quem bem contar hora e meia há-de achar”. Veio Fevereiro, já com dias bonitos, em que Piupiu se atreveu a voar até à casa onde nasceu, a visitar o ninho da sua infância.

— Temos Primavera, já vieram as andorinhas! Ainda bem, que já estava farta de tanta chuva! — comenta feliz a dona, sem se recordar de outro dito popular: “Uma andorinha não faz a Primavera”.

Foi preciso Março para chegarem as primeiras andorinhas vindas da migração. . Mas nenhuma era da sua família.

Até que...

— Mãe, pai! Sou eu, não me reconhecem?


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