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quarta-feira, 28 de maio de 2014

A ditadura do verbo ser

Reduzem o conhecimento do Mundo, das pessoas, dos movimentos sociais à colagem de etiquetas. É de esquerda. É de direita. É fascista. É comunista. É um escritor regionalista. É literatura light. É casada. É divorciada. É uma besta. É parvo. É fumador. É do Benfica. Chega-se até a usar o rótulo -- já o ouvi -- É apaixonado.
E uma vez etiquetada a entidade, dispensa estudo aprofundado. A etiqueta revela tudo. Pelo menos o que importa saber aos etiquetadores. Por isso, quando algo de novo surge, na nossa paróquia, nessa Europa a que pertencemos mas, excepção à regra, não somos, é um afã, um frenesim, uma inquietação, até que se lhe cole a etiqueta tranquilizadora: É de extrema-direita! É de extrema-esquerda! É...!
Espantosa, omnipresente, a ditadura do verbo ser. E tão conservadora!

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Falando de armas

Deixemo-los, então, matando saudades e apaziguando os corpos jovens, virá o tempo em que se não procurarão com este ardor, bom é que aproveitem agora enquanto as peles escaldam e ruborizam, talvez o que neste momento os une os mantenha colados pela vida fora, a ver vamos, como dizia o tal invisual, e aproveitemos para falar de tropa, armas, tiros, balas; eu sei, é assunto que não merece figurar em romance do nosso tempo, há muito extinto o serviço militar obrigatório, estigmatizadas as armas, estejam elas nas mãos de marginais ou das forças policiais... Se eu tivesse juízo, esquecê-las-ia e faria antes a descrição de um restaurante chique da época, como Os Corações Unidos, falaria do vestuário feminino, matéria sempre interessante, iria até ao Mosteiro de Alcobaça, onde o Marino tantas fotografias tem tirado... Poderia até valorizar a obra relatando como se deixa engatar pelas francesas, mulheres já emancipadas, ardentes e desejosas de conhecer macho latino, espécie que o progresso tem vindo a colocar em vias de extinção e elas próprias apenas apreciam em país estrangeiro, para breves momentos de prazer em curtas férias. 
Mas não: como Camilo, “sou avesso às descrições”. Voltemos, portanto, às famigeradas armas, causa de toda a violência, sabido que sem elas o Homem seria dócil cordeiro, devendo as almas mais sensíveis saltar os parágrafos do capítulo seguinte que tresandam a pólvora e podem ferir tímpanos sensíveis.
Um amor inventado, Leya Online

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Gilvaz (2)

Gilvaz é a história de um jovem jornalista e revolucionário enviado ao Minho a cobrir os motins que por lá eclodiam contra os enterros nos cemitérios. Eis mais um excerto, provavelmente o último que divulgarei nos próximos tempos:
"Especulam aquelas santas, nada de concreto sabendo — mas aproveitam a oportunidade de denegrir Ermelinda aos olhos do missionário, essa fingida que dá espectáculo na missa lhe para cair nas boas graças! Como se cada uma delas não tivesse também abandonado aldeia, família, marido as casadas, para acompanhar de terra em terra, de igreja em igreja, aquele missionário, um dos quinze que partiram de Leiria a evangelizar, persuadidos de que a que a melhor África era o nosso Portugal e os seus inocentes pretinhos, os quais, faltos de douta cabeça a orientá-los, se perdiam, levados pela conversa ímpia dos liberais, enquanto os padres, acomodados no conforto das respectivas paróquias, esqueciam o rebanho e apenas zelavam pela preservação dos seus prazeres lidibinosos e proveitos cúpidos — quando não eram, também eles, livres-pensadores descrentes da virtude das penitências, das benfeitorias dos jejuns, sem fé no fogo purificador do Inferno!
Irmãs — assim se tratam entre si, assim se lhes dirige o povo, como se fossem freiras nesta confraria ambulante, todas elas a dar testemunho dos milagres do missionário: à Maria do Rosário, há anos acamada, bastou o "Levanta-te e anda!" para se pôr de pé e o seguir, Maria de Jesus, que há muito sofria de terrível prisão de ventre, ouviu-lhe a pregação e em poucos dias ficou aliviada, Joana Bartolomeu, toda a vida gaga até que o santo lhe soltou o freio, deu em falar escorreita e é um gosto ouvi-la .alardear os milagres do varatojano, Maria Angelina, de quem muito se falará nesta história, maria-rapaz, bêbeda, brigona, amiga de espancar homens à unha ou à paulada, fez-se tenra ovelhinha, meiga, amorosa, tão contristada com o padecimento de Jesus na cruz que se deixou dos palavrões feios com que atroava tabernas e escandalizava homens e mulheres de bons costumes, e só se lhe ouvem sofridos gemidos "Ai, meu Jesus! Porque te fizeram tanto mal?", agora Ermelinda, possessa por espírito maligno sem ninguém o saber, nem ela própria, talvez apenas o marido, João Pereira, de tal desconfiasse, tão duramente ela o tratava — e o poder do missionário de ambos a libertou!

Maravilha-se o povo com os prodígios do santo, indigna-se com as críticas dos ímpios, que riem das prédicas e apoucam os milagres, como se também eles fossem capazes de fazer o mesmo — pôr a andar paraplégica, a falar muda, curar obstipação crónica, fazer largar bebida e maus costumes, expulsar espíritos imundos! Alguns hereges chegam ao extremo de duvidar do testemunho de pessoas sérias que juram ter visto com aqueles "dois que a terra há-de comer" o missionário parar o Sol enquanto decorria a pregação para que nenhuma mulher se fosse pressionada pelas urgências da lide doméstica, depois há ainda os jacobinos, de má fé, a denegrirem, a ofenderem frade e devotas, atrevendo-se a insinuar que a muda deixara de falar por se ter zangado com a família, que a da obstipação nunca comia couves e feijões, a entrevada era retorcida e preguiçosa e recusava sair da cama para castigar o marido, a possessa mulher mal fodida, doença de que, calúnia ignóbil, o frade a terá depressa curado... Enfim, quem tiver olhos que veja, quem tiver ouvidos que ouça, embora milagre maior fosse certamente ouvir com os olhos ou ver pelos ouvidos."

terça-feira, 20 de maio de 2014

O homem das cicatrizes

"Minho, Abril de 1846

Repare-se naquela mulher, Ermelinda de seu nome, trigueira rechonchuda, meia idade, cabelo tosquiado, trajada de negro e de vermelho — uma das beatas que pelo Minho acompanham os missionários com devoção idêntica àquela com que os apóstolos seguiram a Cristo. Atente-se nela porque, muito em breve, e em plena missa, cairá por terra, uivará como lobo ferido, torcer-se-á com horríveis convulsões, obviamente possessa pelo Maligno, que pela boca de Ermelinda insultará o missionário:
— Bêbedo! Calão! Calaceiro!
O frade varatojano cora com as injúrias, mas é teso; nenhum demónio o assusta. Interrompe a cerimónia, desce do púlpito, com voz firme ordena: — Vade retro, Satanás! Em nome de Maria e de seu filho Jesus, eu te ordeno, porco imundo, sai do corpo de Ermelinda do Nascimento Canhestro!
De gatas, a mulher guincha imitando porco no chiqueiro, pela sua boca ronca o demónio que a possui, o missionário pega-a pelos braços, levanta-a, dá-se o primeiro milagre, a mulher deixa de se debater, o varatojano olha-a nos olhos, repete esconjuros em Latim, e finalmente, após roucas recusas, gemidos protestos, vãs súplicas para que o deixe ficar naquela morada, o demo sai do corpo de Ermelinda, que tomba inconsciente. Necessário foi, para além do esconjuro, que o frade tivesse dito por inteiro o nome da mulher, para que ao espírito imundo não restassem dúvidas de que era daquela morada, e não de outra, que o escorraçava, subentendendo-se, no entanto, que poderá voltar amanhã a tomar conta do seu corpo e espírito, para que o frade o expulse novamente. Assim o demónio vai ocupando a eternidade, e assim ajuda o missionário nas conversões. 
Ermelinda continua prostrada, inconsciente, como se com a saída do espírito demoníaco se tivesse ido também o seu, e o frade pega-lhe na face, esbofeteia-a, ordena-lhe que volte a este mundo pois não é ainda o tempo de o abandonar — admire-se, como faz o povo, o poder deste santo, que comanda a própria morte!
Jovem forasteiro, vindo talvez em busca de diversão, chama indiscretamente a atenção para o saiote atado, como se a possessa já soubesse que iria cair por terra, e o demo não quisesse estragar a solenidade do milagre com a exposição das partes íntimas, alvas coxas..."
(Romance inédito meu, em fase de conclusão. Mais seis meses, um ano talvez, e estará terminado.)

domingo, 18 de maio de 2014

Subsídios para a compreensão das causas de morte nos galináceos


Os meus galos, ao contrário das galinhas, raramente chegam a velhos. Intrigado com as discrepâncias entre sexos no que à longevidade respeita, procedi a exaustivo estudo estatístico, o qual me permitiu identificar as principais causas de morte dos machos. São elas:

1. Atacar o dono. Morte em uma a duas semanas.
2. Barulho excessivo, sobretudo durante a noite. Duas a três semanas de vida.
3. Violência doméstica excessiva, que é como quem diz brutidade para com as fêmeas. Menos de um mês de vida.
4. Fricassé, púcara, cabidela. Morte quase imediata.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

No mar do olvido

É no fel que tudo fenece, escreveu o meu trovador pouco antes de morrer, conforme testemunha o primo e narrador:
"Procurou-me o senhor Fernão Lopes, escrivão dos livros de el-rei e de seu filho, o príncipe D. Duarte, que ambiciona escrever obra para que não caiam no esquecimento os feitos grandiosos dos antigos reis, sobretudo os de nosso senhor D. João, a cujo lado tive a honra de por várias vezes lutar. Queria o senhor Fernão Lopes saber pormenores, confirmar histórias, confrontar nomes com acontecimentos para, no seu dizer, escrever a verdade, sem outra mistura, nem fingidos louvores. Desejo que o consiga, embora tenha minhas dúvidas, que me ensinou a experiência que há tantas verdades quantos os protagonistas das histórias, e não poucas vezes maior é a verdade daqueles que as não viveram do que os dos homens e mulheres nelas envolvidos. As nossas conversas fizeram-me recuar ao passado, avivar memórias, reviver acontecimentos como se o rio do Tempo corresse agora em sentido contrário, e dei por mim a pôr, também eu, por escrito as minhas recordações, mau grado o mérito duvidoso que haver possam: é antes maneira de pesar minha vida.
Porém, nada do que se escreve é o que aconteceu: faltam as cores, os odores, os ruídos, mais do que tudo, a juventude sumida nesse rio que se aproxima da foz para se diluir no mar do olvido, águas indistintas onde tudo o que antes correu se dissolve inexoravelmente… Ou, como na balada de meu primo, cantada a bordo da nau que nos levou até Ceuta, “é no fel que tudo fenece.”
(...)
Longe, longe, vão os sonhos
De minha mocidade
Que a maior idade
Torna medonhos
Assim nos tornamos enfadonhos
Aos ouvidos de nossos senhores
Esquecidas as mercês prometidas
Ninguém nada nos agradece

É no fel que tudo fenece…"
(Inédito meu)

segunda-feira, 12 de maio de 2014

No tempo dos Três Efes

"Cumprimenta clientes que jantam, conhecidos que seroam, toda a gente com os olhos pregados no
televisor, TV, dizem os entendidos, ouvidos atentos às conversas, lábios comentando e descomentando, com futebol, fado e Fátima vamo-nos anestesiando e passando o tempo, no ecrã pagadores de promessas rasgam os joelhos entre rezas mastigadas mecanicamente — prometeram, obtiveram a graça, é a altura de a pagar para que no dia do Juízo Final nada conste em seu desfavor no razão divino."
Um amor inventado

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Uma cantiga de amigo serôdia

Lembram-se da poesia trovadoresca, que floresceu de finais do séc. XII a meados do séc. XIV? A mim, sempre me fascinou. E um dia aconteceu que uma das minhas personagens fosse trovador e escrevesse a seguinte cantiga de amigo, paralelística, em dísticos monórrimos, alternando a rima em /i/ com a rima em /a/, com refrão e leixa-pren  -- ainda se recordam do que é isso?


Amar amado amar amigo
O brial começado, o brial tecido
Ai meu amigo Ai meu amado

Amar amigo amar amado
O brial tecido, o brial começado
Ai meu amigo Ai meu amado

O brial começado o brial tecido
Chor’eu dona virgo o brial rompido
Ai meu amigo Ai meu amado

O brial tecido o brial começado
Chor’eu dona virgo o brial rasgado
Ai meu amigo Ai meu amado
Breves achegas para a interpretação da cantiga de amigo do meu trovador
No primeiro par de dísticos, a donzela exprime a sua condição de apaixonada, tendo já começado o enxoval para o casamento; apenas o refrão, sentido como um lamento, destoa.
O segundo par de dísticos revela-nos que algo correu mal no noivado. Embora o enxoval esteja começado, a donzela chora e, perturbada, assume-se como "dona", em manifesto contraste com o adjectivo "virgo", virgem, o qual remete para a sua condição anterior de donzela. Fica o lamento do refrão "ai meu amigo, ia meu amado"... 
E mais não digo,  que a subtileza era então uma arte.

terça-feira, 6 de maio de 2014

A peste

Lisboa estava caótica, fétida, os excrementos amontoavam-se nas ruas e vielas, cobertos de moscas, o ar irrespirável da fumaça do alcatrão e azeite de purgueira que, talvez influenciados pelo nome, queimavam constantemente num esforço vão de purgar a cidade dos miasmas, de manhã à noite, o dobre plangente dos sinos a finados, a gritaria atroz das carpideiras, as imprecações e ameaças contra os judeus, causadores daquele castigo de Deus por termos entre nós semelhante canalha ímpia. Eu via-me então a enfrentar a turba para defender minha mulher, minha filha, a sua família, perseguido como anos atrás — parecia-me a uma vida de distância, o que não surpreende, que as vidas então soíam ser breves — quando me acusaram vilmente de haver abusado de um rapazinho. Talvez, pensava então, os desígnios divinos sejam realmente insondáveis e Ele tivesse poupado Esther e nossa filha aos desmandos e horrores do nosso tempo: como era possível, depois de séculos a viver lado a lado, é certo que com desconfianças constantes e brigas frequentes, que não tivéssemos aprendido a tolerar os judeus e as suas diferenças? Como era possível que, em nome de um rabi que nos ensinou a amar o próximo, os perseguíssemos cruamente e os matássemos barbaramente? Sim, também eu matei. Mas a salteadores, e na guerra a outros quiçá melhores do que eu, que igual me haveriam feito se, por sorte ou por ser mais novo, me não houvera antecipado. 
Porém, nas ruas de Lisboa apedrejava-se a mulher ou a criança judia, queimava-se gente igual a nós apenas por ter religião diferente e porque, não podendo fazê-lo à peste, se virava a cólera contra os mais fracos; queimava-se bruxa, porque alguma vizinha denunciara pobre mulher por supostos feitiços com que lhe haveria roubado o homem, como se para tal não abastasse a juventude, o maior ardor entre lençóis, o melhor feitio, ou um palmo de cara menos estragado pelas bexigas…
Todos os meus conhecidos haviam sumido da cidade. Um dos últimos foi meu primo, outra vez acusado de sodomia — fugira apressadamente antes que o meirinho lhe deitasse mão; colocara-se, constava, ao serviço do Duque de Nápoles, aí exercendo o seu mester de homem de armas; D. Soeiro fugira à peste e refugiara-se com a família na sua quinta de Cascais, onde tentava conseguir maridos para as filhas, todas elas prenhes em fim de tempo, como querendo contrariar a mortandade que tomara conta da capital; Hermengarda morrera da maleita que consigo levou também o fiel preto que nem espada nem navalha atemorizavam. Vendo-me só, resolvi também eu abandonar a capital, não na esperança de que longe dela, sem ter presentes lembranças de felicidade anterior, meu mal esmorecesse, antes para me enterrar em Lamego como num túmulo, enquanto não chega a hora de para um de pedra ser carregado.
Inédito meu

domingo, 4 de maio de 2014

Eucaristia

"... eu ouvia o Latim do padre, confessava-me hipocritamente, de tempos a tempos recebia em comunhão o corpo de Senhor — e mentalmente sorria ao engoli-Lo desenxabido sem mastigar, reduzido a farinha sem fermento: ali estava a prova do que Sara amiúde me dizia: Deus está morto, ou foi um sonho nosso, para termos quem nos amparasse, protegesse, valesse nas nossas necessidades; porém estamos sozinhos no Mundo, não imagino porquê nem para quê, e nem sequer o Tempo podemos fazer correr ao contrário, para que eu emende cada um dos meus erros e desvarios e possa um dia desaparecer quente, aconchegado, feliz, de volta ao útero de minha mãe."
Inédito meu

NOTA: este texto, reproduzido também no Facebook, indignou uma pessoa que me merece muita consideração. Foi esta a resposta que dei ao seu comentário:

É preciso não confundir o autor com (uma das) personagens. E ter presente que o excerto está necessariamente descontextualizado. Em comum com D. Rodrigo, tenho uma inquietação existencial que me leva a interrogar-me sobre aquilo que considero mais importante: Deus existe? Existiu? Ou será a projecção dos nossos desejos, das nossas expectativas? Rodrigo Semedo, desesperado por ter perdido a mulher e a filha, perde também a fé ao ver os cristãos perseguirem os judeus, a quem acusam de responsáveis pela peste. Inverosímil? Chocante? Blasfemo? Talvez. Mas a literatura, que persigo, é uma inquietação e não um mundo de certezas. E eu vejo-me como um médium, rodeado de espíritos, alguns malignos, que me possuem e me obrigam a dar-lhes voz. 
(Boa desresponsabilização. Quase como a dos gregos dos poemas homéricos, que diziam que um deus tinha tomado posse do seu corpo.)