Lisboa estava caótica, fétida, os excrementos amontoavam-se nas ruas e vielas, cobertos de moscas, o ar irrespirável da fumaça do alcatrão e azeite de purgueira que, talvez influenciados pelo nome, queimavam constantemente num esforço vão de purgar a cidade dos miasmas, de manhã à noite, o dobre plangente dos sinos a finados, a gritaria atroz das carpideiras, as imprecações e ameaças contra os judeus, causadores daquele castigo de Deus por termos entre nós semelhante canalha ímpia. Eu via-me então a enfrentar a turba para defender minha mulher, minha filha, a sua família, perseguido como anos atrás — parecia-me a uma vida de distância, o que não surpreende, que as vidas então soíam ser breves — quando me acusaram vilmente de haver abusado de um rapazinho. Talvez, pensava então, os desígnios divinos sejam realmente insondáveis e Ele tivesse poupado Esther e nossa filha aos desmandos e horrores do nosso tempo: como era possível, depois de séculos a viver lado a lado, é certo que com desconfianças constantes e brigas frequentes, que não tivéssemos aprendido a tolerar os judeus e as suas diferenças? Como era possível que, em nome de um rabi que nos ensinou a amar o próximo, os perseguíssemos cruamente e os matássemos barbaramente? Sim, também eu matei. Mas a salteadores, e na guerra a outros quiçá melhores do que eu, que igual me haveriam feito se, por sorte ou por ser mais novo, me não houvera antecipado.
Porém, nas ruas de Lisboa apedrejava-se a mulher ou a criança judia, queimava-se gente igual a nós apenas por ter religião diferente e porque, não podendo fazê-lo à peste, se virava a cólera contra os mais fracos; queimava-se bruxa, porque alguma vizinha denunciara pobre mulher por supostos feitiços com que lhe haveria roubado o homem, como se para tal não abastasse a juventude, o maior ardor entre lençóis, o melhor feitio, ou um palmo de cara menos estragado pelas bexigas…
Todos os meus conhecidos haviam sumido da cidade. Um dos últimos foi meu primo, outra vez acusado de sodomia — fugira apressadamente antes que o meirinho lhe deitasse mão; colocara-se, constava, ao serviço do Duque de Nápoles, aí exercendo o seu mester de homem de armas; D. Soeiro fugira à peste e refugiara-se com a família na sua quinta de Cascais, onde tentava conseguir maridos para as filhas, todas elas prenhes em fim de tempo, como querendo contrariar a mortandade que tomara conta da capital; Hermengarda morrera da maleita que consigo levou também o fiel preto que nem espada nem navalha atemorizavam. Vendo-me só, resolvi também eu abandonar a capital, não na esperança de que longe dela, sem ter presentes lembranças de felicidade anterior, meu mal esmorecesse, antes para me enterrar em Lamego como num túmulo, enquanto não chega a hora de para um de pedra ser carregado.
Inédito meu
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