"Minho, Abril de 1846
Repare-se naquela mulher, Ermelinda de seu nome, trigueira rechonchuda, meia idade, cabelo tosquiado, trajada de negro e de vermelho — uma das beatas que pelo Minho acompanham os missionários com devoção idêntica àquela com que os apóstolos seguiram a Cristo. Atente-se nela porque, muito em breve, e em plena missa, cairá por terra, uivará como lobo ferido, torcer-se-á com horríveis convulsões, obviamente possessa pelo Maligno, que pela boca de Ermelinda insultará o missionário:
— Bêbedo! Calão! Calaceiro!
O frade varatojano cora com as injúrias, mas é teso; nenhum demónio o assusta. Interrompe a cerimónia, desce do púlpito, com voz firme ordena: — Vade retro, Satanás! Em nome de Maria e de seu filho Jesus, eu te ordeno, porco imundo, sai do corpo de Ermelinda do Nascimento Canhestro!
De gatas, a mulher guincha imitando porco no chiqueiro, pela sua boca ronca o demónio que a possui, o missionário pega-a pelos braços, levanta-a, dá-se o primeiro milagre, a mulher deixa de se debater, o varatojano olha-a nos olhos, repete esconjuros em Latim, e finalmente, após roucas recusas, gemidos protestos, vãs súplicas para que o deixe ficar naquela morada, o demo sai do corpo de Ermelinda, que tomba inconsciente. Necessário foi, para além do esconjuro, que o frade tivesse dito por inteiro o nome da mulher, para que ao espírito imundo não restassem dúvidas de que era daquela morada, e não de outra, que o escorraçava, subentendendo-se, no entanto, que poderá voltar amanhã a tomar conta do seu corpo e espírito, para que o frade o expulse novamente. Assim o demónio vai ocupando a eternidade, e assim ajuda o missionário nas conversões.
Ermelinda continua prostrada, inconsciente, como se com a saída do espírito demoníaco se tivesse ido também o seu, e o frade pega-lhe na face, esbofeteia-a, ordena-lhe que volte a este mundo pois não é ainda o tempo de o abandonar — admire-se, como faz o povo, o poder deste santo, que comanda a própria morte!
Jovem forasteiro, vindo talvez em busca de diversão, chama indiscretamente a atenção para o saiote atado, como se a possessa já soubesse que iria cair por terra, e o demo não quisesse estragar a solenidade do milagre com a exposição das partes íntimas, alvas coxas..."
(Romance inédito meu, em fase de conclusão. Mais seis meses, um ano talvez, e estará terminado.)
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