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segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Entropia

Na primeira metade do século XV, em romance meu não publicado, o sonho de reversão da entropia: 
“Prouvera ao Todo o Poderoso que as coisas corressem em sentido contrário – a vida, da velhice para a infância, os rios do mar para a nascente, as montanhas do cume para o vale que um dia foram — e todo este mundo sempre em mudança seria um lugar bem diferente e certamente bem mais tranquilo, talvez ainda intacto o Jardim do Éden onde fomos criados e nados: Adão e Eva, conhecendo antes o mal do pecado original havê-lo-iam evitado e, se o não fizeram, nós, seus descendentes, à medida que os anos passassem, corrigiríamos cada um dos erros da juventude que nos atormentam na velhice e não terminaríamos os nossos dias enfermos, rabugentos, amargos como fel, antes risonhos e felizes como crianças de peito a quem nem o Mundo nem a alma, nem o próprio corpo doem, até que, paulatinamente, desapareceríamos bem aconchegados no ventre materno. Os próprios rios, em vez de desalmadamente procurarem destino incerto resvalando por encostas, lançando-se por penhascos, embatendo furiosos contra rochedos que lhes barram o caminho, espreguiçar-se-iam tranquilos da foz para a nascente, contornando obstáculos, evitando sofrimentos, e as montanhas, livres do pecado da soberba, minguariam das alturas para o vale ou a concavidade que antes foram, sentindo-se tanto mais próximas do Céu quanto mais dele se afastavam...”
JCC, não publicado

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

A canção do vinho branco

O jantar foi ao borralho, na aldeia: costeletas do cachaço grelhadas na lareira, pão, vinho branco e novo para mim, velho e tinto para a minha mulher, laranja caseira, enorme e deliciosa, passas de figo e jeropiga da minha produção. 
O branco está uma maravilha, seco, límpido (passei-o a limpo na terça-feira passada). E, inevitavelmente, ao bebê-lo me recordei da canção do vinho branco, interpretada aqui a escassas dezenas de metros, na Associação Recreativa Montense, há quase meio século.
Uma artista da rádio, cujo nome esqueci há muito, abrilhantava o espectáculo e, para nele envolver o povo, organizou um "festival da canção": ganharia quem tivesse mais aplausos. 
Muitos moços acorreram ao palco, ansiosos por brilhar, por ganhar. Beatles para os estudantes, fado e folclore para os outros. 
A competição estava a terminar sem que a força das palmas anunciasse vencedor inequívoco, quando o Tio A., a cair de bêbedo, cambaleou até ao palco, travado pela mulher: 
— Homem, tu tem juízo, não me envergonhes mais!
E ele: — Larga-me, tartamudeava, que vou mostrar a esta rapaziada como é que se canta.
— O que é que vossemecê vem cantar?
— Eu venho cantar a canção do vinho branco.
O povo delirou. E ele cantou por entre gritos e assobios de encorajamento:
Ai vinho branco
Que te adoro tanto
A toda a hora
Bebo um casco inteiro
Sem deitar nada fora...
Os aplausos foram ensurdecedores. Ganhou.

Pois eu hoje não bebi um casco, apenas um único copo. É que o safado tem mais de 15 graus!

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

As bicicletas (1)

Aprendi tarde, e mal, a andar de bicicleta. Não havia nenhuma em minha casa, o que me fazia sentir desfavorecido face a miúdos ainda mais pobres, os quais, embora sem altura para chegar do selim aos pedais, as montavam com as pernas por debaixo do quadro e se exibiam no adro em corridas e acrobacias.
É certo que o meu pai tinha motoreta, e então eram tão raras na aldeia como os automóveis. Mas nem me passava pela cabeça montar nela, cair certamente, amassar chapa, riscar a pintura; receava sobretudo que, por volta da meia noite, quando o meu pai lhe pegasse para sair, sempre atrasado para o trabalho distante, ela não trabalhasse, fazendo-o perder o dia, ameaçando até o emprego.
Um dia, um primo, uns anos mais velho, apareceu com bicicleta. Talvez do tio, já não sei. E lá vamos nós a correr pelas ruas, ele a pedalar, eu atrás apeado, esbaforido. A certa altura, propôs ensinar-me.
Comecei por recusar, a medo de cair. Ah, mas ele amparava a bicicleta, não me deixava cair!
Assim tranquilizado, montei a custo no selim, tentei chegar aos pedais. 
— Não precisas, eu empurro, depois aprendes a dar meias pedaladas. 
Poucos metros depois, já ele largava a bicicleta por breves momentos, e eu ganhava confiança. Até que, quase no fim da rua, entendeu terminada a lição, que a paciência das crianças é curta. E não encontrou melhor forma de marcar o final do que com violento empurrão no guiador, fazendo-me estatelar violentamente no pó da estrada.
Esfarrapado, dorido, chorei, protestei contra a estupidez do acto.
— Todos caem, precisavas de aprender!
Não voltei a montar em bicicleta até que, aí pelos meus dezoito anos, outro primo, mais novo, surgiu com velha pasteleira. Experimentei sozinho, rua abaixo, pouco depois já pedalava pelas ruas da aldeia, triunfante, eufórico, por, finalmente, ter aprendido algo que qualquer miúdo de seis anos fazia, e muito melhor do que eu.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Levantar quando entra senhora

Aquele meu amigo estava sentado à secretária no seu gabinete quando entrou intempestiva uma professora a ralhar — só quem não foi professor desconhece a elegância de modos de algumas delas.
Gritou, barafustou; ele, sereno, continuava a escrever com a sua Parker.
E ela, talvez por ter esgotado o rol das queixas docentes:
— Oiça lá, o colega não se levanta quando está a falar com uma senhora?
Ele levantou então os olhos, fitou-a e respondeu:

— Sempre!

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Vale a pena ter seguros?

Eu, que nada percebo de Direito, interrogava-me: culpa e responsabilidade pelos estragos do mau tempo devem ser imputados ao vento, que os causou, à Câmara Municipal de Lisboa, que não cortou as árvores da cidade, ou aos proprietários dos carros, que os estacionaram na proximidade das árvores, apesar dos alertas da meteorologia e da protecção civil?
Não foi necessário sequer aguardar por julgamento; acabo de ouvir que a CM de Lisboa assume a responsabilidade. 

Assim sendo, admitindo que daqui para a frente o Estado assume a responsabilidade pelos danos provocados pelas  forças da natureza — incêndios, derrube de árvores, inundações, certamente, e por que não tremores de terra — vale a pena continuar a pagar exorbitâncias em seguros para proteger casa e carro?

terça-feira, 7 de novembro de 2017

Telefones e conversas

Para mim, as conversas ao telefone são um triste remedeio.  Ao fim de algum tempo,  a mão que o segura fica dormente, aquece a orelha, mudo para a outra, vejo a conversa a arrastar-se, mas não a desenvolver-se, a impaciência provoca-me bicho-carpinteiro, que os numerosos afazeres com que preencho os dias reclamam insistentemente a minha pessoa...
Também nisto me revejo na (minha) avó da Luz. Apesar da solidão, que bem lhe devia pesar durante as longas invernias na aldeia quase deserta, quando me telefonava a conversa era mais ou menos esta: “Vocês estão todos bons? Olha, se cá quiseres vir, já há laranjas apanhadoiras. Beijos para todos, fiquem bem e até à próxima, se Deus quiser." E desligava.
Já a sua filha (e minha mãe) se alongava um pouco mais ao telefone; mas, também ela, logo que tinha sabido dos "meus", me despachava, mesmo quando eu procurava prolongar a conversa:
"Mãe, e por aí?"
"Ora, por cá tudo na mesma, não há novidades. Vou desligar que estou a arrefecer. E estou em pé, doem-me  as costas."

Hoje, que tenho a idade de uma e de outra, sinto também que conversar longamente requer ocasião e condições: é preciso disponibilidade, estar presencialmente com os interlocutores, bem instalado, confortável, melhor ainda com comida e bebida à frente — e televisão, computadores e telemóveis desligados.

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

A minha Vespa


Tempos atrás, pu-la à venda; mas apenas fui contactado por um vigarista no estrangeiro, pelo que a fui deixando ficar. Neste Inverno, vou pô-la como nova: remoção de pontos de ferrugem, retoques de pintura, substituição de cromados ferrugentos, matrículas novas, que nas velhas caíram caracteres, lubrificação, bateria nova... 

Com a alegria da criança que redescobre brinquedo há muito esquecido, voltei à minha velha Vespa 125, abandonada a um canto da garagem e com pouco uso anual por ter deixado de lhe fazer seguro — umas pequenas voltas de tempos a tempos para não enferrujar, e pronto.
Já renovei o seguro, já dei umas boas voltas nela a ver o estado geral.
Como quando a comprei, no início dos anos 80, pega à segunda pedalada, responde bem, o motor trabalha como relógio bem afinado; noto, porém, o banco mais rígido, a suspensão um pouco dura, o que não surpreende pois amortecedores e pneus ainda  ainda são de origem.
Não, não está à venda.

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Os sapatos do antifascista

Foi no Itau, café do Camões, aí por 1972, que me apresentaram aquele revolucionário, acabado de sair de Caxias, onde a Pide o manteve preso por largos meses. E ele, olhando em redor sempre vigilante, sempre alerta, que os informadores estão por todo o lado, contava pormenores. Não tinha sido submetido à tortura do sono. Nem à da estátua. Nem... Ah, mas foi torturado, muito torturado, a sua militância duramente posta à prova, e baixando a voz, escondendo os lábios de olhares indiscretos com a concha da mão, contava: punham-lhe pó nos sapatos para as solas se romperem mais depressa! “E os bufos, pá, vinham ter comigo: — Isto está mal! 

Mas eu fazia-me parvo, esgazeava os olhos, nada dizia, até que, sem me conseguirem arrancar nada, tiveram de me soltar!”
Despediu-se, saiu, sempre a olhar em redor, assustadiço como coelho em tempo de caça.
E eu: — O gajo é doido, não é?



Ah, tinha ficado maluco em Caxias. Mas já antes não batia muito certo, talvez por isso tivesse sido preso: durante a greve do ano anterior, um grupo de estudantes tentava forçar a entrada numa sala para expulsar os fura-greves, a polícia foi chamada, todos fugiram menos ele, que foi apanhado a forçar a porta!

(Foto: fachada do prédio onde funcionou o Instituto Comercial de Lisboa)

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Eu enquanto leitor

Foi aí pelos meus quinze anos que me tornei leitor eclético, anárquico, incapaz de ler livros que não me seduzam, me agarrem desde o início. (Os Maias foi uma das excepções, mas tive de saltar as páginas iniciais, com a descrição do Ramalhete.)

Estudava então em Leiria, pouco, e estava alojado em casa modesta, velha, escura, tristonha, de uma senhora divorciada que recebia estudantes como hóspedes — sim, ao contrário do que hoje se diz por aí, o divórcio existia antes do 25 de Abril, embora se não  aplicasse aos casamentos religiosos. 
Adiante. O que interessa é que, ao fundo de um corredor, amontoavam-se centenas de livros, sem qualquer ordem. Para um miúdo viciado na leitura, afastado da família, num meio completamente estranho, foi um maná dos céus. Devorava um ou dois por dia, misturando Júlio Dinis com Caryl Chessman, o condenado à morte que na cela se tornou escritor, Thor Heyerdahl e a sua Kon-Tiki, Júlio Verne, Dumas, Salgari, Defoe, histórias policiais e de terror com os famosos livros de cowboys e o Major Alvega...
Os dias voavam, as saudades não doíam tanto... 
(Naquele primeiro período, os resultados escolares não foram brilhantes.)
Passou meio século, creio que evolui como leitor, mas não mudei de critérios: se o livro não me puxa, não o leio. Por muito elogiado, por muito premiado que seja. Os meus gostos não se subordinam aos alheios. E vem isto a propósito de ontem ter procurado obra muito badalada recentemente. Bem escrita, mas intragável, barroca, em que o discurso (o modo de contar) abafa a história. 
Deixo-o para as noites de insónia de leitores persistentes e pacientes, convicto de que só com paciência de corno se conseguirá ler.

O rei vai nu...

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

A brincar, a brincar...

Aí por 82 ou 83, tive professor na Faculdade que começou a apresentação ridicularizando o nome da disciplina: — Fonética e Morfologia do Português é o mesmo que dizer os Alhos e Bugalhos do Português! E prosseguiu no mesmo tom criticando acerrimamente o programa que tinha acabado de distribuir, com o qual, pelos vistos não se identificava minimamente, culminando na sugestão de que deitássemos para o lixo a bibliografia anexa, que substituiu  por outra, obviamente indisponível e quase inacessível. 
Não, não sabia se existiam tais obras nas bibliotecas da Faculdade, nem o preocupavam as dificuldades de aquisição naquele tempo em que as compras ao estrangeiro estavam fortemente restringidas pela falta de divisas e problemas cambiais, e nós, pobres alunos, mal tínhamos dinheiro para fotocópias.
As aulas eram erráticas, sem planificação, ao sabor dos seus humores. O professor, sempre arrogante, autoritário, sobranceiro com os alunos. Sardónico ao falar dos colegas da área, sempre pronto a destruir as nossas respostas às suas perguntas com mordacidade cruel, num desejo infantil, assim supunha eu, de se ver venerado. Mas havia mais, como vim a descobrir quando veio a “frequência”. Que, inevitavelmente, me correu mal.

— S’tôr, quando é que entrega os testes?
— Não  entrego. E do alto da sua estatura, ampliada pelo estrado, passeou olhar de gozo pelo Pavilhão Velho repleto de alunos incrédulos, a  apreciar o efeito, a saborear o burburinho de protesto.
Depois acrescentou: — O departamento não permite, mas podem passar amanhã pelo meu gabinete para os ver e  saber as notas.
Bom, à hora aprazada lá estávamos, eu e uma colega, autêntico mulherão.
— Você, disse-me, teve onze. Espantei-me. O teste não tinha sinais de ter sido corrigido. Mas ele era o deus único e verdadeiro da linguística e eu estava, tinha consciência disso, mal preparado pela leitura apressada de fotocópias e apontamentos dispersos e desconexos. 
Onze dava para passar, era o que eu queria.
— E você, disse à boazona minha colega, teve sete.
— Sete? O s'tôr está a brincar comigo!
O s'tôr ria. E ela teimava: — O s’tor só pode estar a brincar comigo!
Com pressa para o comboio — trabalhava à noite, a cem quilómetros, estudava de dia — deixei a minha colega a insistir que  o professor só podia estar a brincar com ela. Até porque me sentia a mais, com ele a propor-lhe irem os DOIS tomar um café fora da faculdade enquanto discutiam a nota.
No dia seguinte, encontro-a na faculdade: — Vês, o professor sempre estava a brincar comigo! Tive dezassete!

Bom, eu fiquei feliz com o meu onze.

sábado, 26 de agosto de 2017

É deixar arder

Já por várias vezes aqui escrevi que os bombeiros não apagam fogos florestais, sem com isso pretender diminuir a sua abnegação e altruísmo postos ao serviço da protecção das pessoas e bens em risco.
Pois ontem tive a prova desta minha afirmação: ao passarmos na serra d’Aire avistámos um reacendimento, com fumo e chamas bem visíveis; parámos no quartel de bombeiros mais próximo a avisar. Já sabiam, aquilo já tinha ardido e não tinham acesso… É deixar arder…
Compreendo-os. Há prioridades, riscos a ter em conta, esforços inúteis. Bem precisam de dar descanso aos corpos exaustos, recuperar as forças para poderem continuar a intervir nos incêndios mais graves, os que ameaçam as populações , os quais, se não chover a sério, irão continuar até aos frios de Novembro.

domingo, 20 de agosto de 2017

AMI ou fraude?

Ontem, sábado, por volta do meio-dia, junto da estação do Oriente, do lado do Vasco da Gama, fui interpelado por jovem casal com coletes da AMI. O rapaz, a falar pelos cotovelos, perguntava-me quanto era necessário para dar uma refeição a uma criança necessitada no nosso país.

Não sabia.

__ Quarenta cêntimos!, dizia triunfal. E eu, que habitualmente não sou dado a contribuições nem a solidariedades, puxo da carteira: — Está bem vou contribuir por ser para a AMI, mas não com 40 cêntimos, que é ridículo. E prontificava-me a dar cinco euros.

O moço não aceitou. E falava, falava apressadamente, numa ânsia de despejar a cartilha aprendida: — Se arranjar uma caixa em sua casa, puser diariamente 40 cêntimos, o dinheiro de um café…

— Não há café a 40 cêntimos! E a querer sair dali, incomodado pelo calor, prossigo: — Já disse que contribuo, vamos lá a isso, que estou com pressa!

… Com os quarenta cêntimos guardados todos os dias para alimentar uma criança, ao fim de três meses tem sabe quanto?

Ia responder. Ele não deixou e arredondou: — 40 euros! E com esses 40 euros de 3 em 3 meses pode ajudar a AMI a alimentar as crianças necessitadas, recebendo em contrapartida um seguro de saúde! Tem algum?

— Não.

— E quanto é que paga quando vai ao dentista ou ao Hospital da CUF?

— Muito dinheiro., abreviei. Não conto a minha vida a estranhos.

— Ora veja… 

Mas eu não queria ver. Uma coisa é dar um donativo para a AMI; outra subscrever um seguro de saúde por 120 euros anuais. Ele não desistia. Queria saber onde tratava dos meus dentes. Disse-lhe. E ele telefona a saber se essa clínica tem acordo com o seguro deles. Entretanto, diz à colega para me fazer o inquérito.

Olho-a com mais atenção. O colete branco da AMI tem nódoas. Puxa de uma ficha cheia de quadradinhos — amarrotada, também pouco asseada.

— Qual o seu clube?

De futebol, presumi. —Não tenho.

Queria que cantasse o hino de um clube. Que coisa mais parva! Nem sei nem sou artista de rua.

O moço interrompe-nos: não havia acordo com a minha clínica. Mas pode ir a qualquer outra…

— Não o faço, por razões que não estou para explicar. E não subscrevo seguros de saúde na rua. Se me der os papéis para estudar em casa…

Não podia.E já desinteressado de mim, despedia-se para prosseguir na caça aos otários. Um pouco mais afastados, outros jovens, com idênticos coletes da AMI, abordavam transeuntes.


A AMI anda nisto? 

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Anjinhos ou anjolas?

Protestam contra o terrorismo gritando Não temos medo. O problema é que "eles" também não têm medo. Ficamos nisto de fazer peitaça e proclamar valentia, na esperança de que os inimigos se intimidem (o que não acontecerá) ou se deixem vencer pelo cansaço ou partimos para a porrada, no duro, a bater onde lhes dói, onde lhes faz mossa -- nos seus pontos fracos, que os hão-de ter? Sem piedade nem misericórdia? Lembram-se dos Hunos, das pirâmides com centenas de milhar de cabeças, de Átila, o flagelo de Deus?

No Delito de Opinião

Hoje há um texto meu no Delito de Opinião, gentileza de Pedro Correia. Muito obrigado!

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Alegretes

Alegretes
A casa, que uma inscrição datava de meados do século XIX, era de pedra tosca, telha romana, pequenas janelas de madeira, os vidros partidos remendados com papelão. 
Na frente, que dava para rua estreita, tinha, de cada lado dos degraus da porta de entrada, alegretes estreitos cobertos por sardinheiras coloridas acima dos quais se elevavam — cabaças! Que eu e o meu primo cobiçávamos, disputávamos: — Aquela é minha! 
Nem sei para que as queríamos. Eram novidade, eram diferentes das demais plantas aldeãs, eram, assim as achava e acho, bonitas na sua elegância feminina de curvas simétricas e perfeitas.
Mas a casa, que tinha pertencido ao nosso bisavô Zabel e passado por herança ao avô Zé Cipriano, estava arrendada. A indivíduo de maus fígados, quezilento — o Maneta, de alcunha e de facto, pois tinha o braço direito amputado pelo pulso. O que nos alimentava as esperanças de em breve nos tornarmos proprietários das apetecidas cabaças era o facto de o nosso avô querer despejar o inquilino:
— Preciso da casa, o meu Emílio quer casar e não  tem onde morar…
Verdade. Quando o tio casou, à pressa como era costume na nossa família, lá se instalou até arranjar melhor.
O Maneta é que não parecia convencido e resistia. Até que o nosso avô nos anunciou: sai no fim do mês, dia 1 vamos lá.
Bem cedo, o meu primo e eu estávamos em casa do nosso avô, cada qual receoso de que o outro, se chegasse sozinho, se apropriasse das melhores cabaças. 
Desilusão: as sardinheiras e cabaceiras jaziam por terra, cortadas rente, cobertas pelas  flores e cabaças, tudo espezinhado maldosamente. 
O meu avô abriu a porta e logo à entrada, grande poia de merda humana enfeitada com flor de sardinheira — tal como em todas nos dois pequenos quartos, na cozinha, até na minúscula despensa interior. E o sobrado encharcado por penicadas de mijo. Fedor insuportável. Olhámos para o avô Cipriano, talvez à espera de ataque de raiva, de ameaças justiceiras.
Mas ele, bom homem e aliviado por se ver libre de tão ruim inquilino, riu às gargalhadas:
— Filhas da puta, muita vontade tiveram para cagar e mijar tanto!
(FOTOS: o avô Cipriano, na única foto que tenho dele, dos seus tempos de militar; no casamento da tia Cesaltina: o meu primo António à esquerda, eu à direita, no meio a minha irmã e o primo Fernando Cipriano; a menina à esquerda era a filha de uma amiga da minha mãe do tempo em que vivemos em Chaqueda, mãe solteira. Nunca mais soube nada dela, a dona Capitolina nem da filha.)

domingo, 6 de agosto de 2017

Milagre ou sugestão?

Entrei na piscina termal de São Pedro do Sul sem fé alguma nos poderes curativos daquelas águas quentes vindas das profundezas, que carregam consigo os odores sulfúreos do Inferno.

E as dores nos joelhos desapareceram! Diluíram-se, evaporaram, não sei. Mas deixaram-me logo ao primeiro tratamento, contrariando a opinião do médico das termas, que me tinha prevenido de que só a partir de onze sessões se começa a notar os benefícios.

Fui como turista, desafiado por amigos para umas mini-férias na região, que incluíam, para preencher os dias, tratamento termal. Voltei sem dores, não digo que convencido, mas muito satisfeito: os joelhos permitiram-me dar por lá umas boas voltas a pé, de tal forma que abusei, mesmo sabendo que não devia; apreciei muito a ginástica na piscina — exercícios igualzinhos ao Chi Kung (Qi Qong) que pratico regularmente há muitos anos —, as massagens e o vapor na coluna; a região, que já tinha visitado no passado, é linda, com muito para descobrir, como os moinhos das fotos abaixo, a gastronomia excelente, pelo que trouxe peso extra a sobrecarregar os joelhos…

Milagre ou sugestão? Tanto se me dá.

sábado, 1 de julho de 2017

Cuidado com os emails!

Este mail  (ver imagem) é uma sofisticada forma de ataque informático (pishing). Aparentemente vem da Amazon e resulta de uma compra de jogos (que, obviamente, não fiz) no Facebook. 

Os piratas esperam que o visado, indignado, clique no link 

 (ver CLICK HERE) para  repor a sua verdade -- e ser, seguramente, infectado.

Desconfiado como sou, não cliquei. Mesmo tendo a certeza de que nada tinha sido comprado, fui ao site da Amazon. fiz o login e procurei por "orders". Nenhuma nos últimos 6 meses.

Não caiam nas armadilhas dos piratas! Nunca cliquem nos links! Lembrem-se sempre do Cântico Negro,  de José Régio: "Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces 

Estendendo-me os braços, e seguros 

De que seria bom que eu os ouvisse 

Quando me dizem: "vem por aqui!" 

Eu olho-os com olhos lassos, 

(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços) 

E cruzo os braços, 

E nunca vou por ali... "

Incêndios e roubo de armas: Verão Quente

Um governo substitui outro para fazer melhor e não para se desculpar com as asneiras do anterior.

Pergunto novamente, como perguntei logo após o morticínio de Pedrógão Grande: não há responsabilidades políticas no roubo de armas e munições em Tancos?

Ou atribuímos  as culpas no primeiro caso a um qualquer e anónimo cabo da GNR, no segundo à falha na videovigilância? 

O que me suscita outra questão: com tanto militar a coçar o cu pelas paredes, não há quem faça serviços -- sentinelas, rondas?

terça-feira, 20 de junho de 2017

O povo

Há o povo que deita foguetes em alvorada de festa, indiferente ao risco de incêndio e sem respeito pelas vítimas dessa noite.
Há o povo que com fingido pesar  faz antes de cada noite de festas da cidade hipócrita minuto de silêncio. 
Mas há também o povo que luta em desespero, com fraca ou nenhuma ajuda oficial, pelo menos nos momentos críticos, mas com uma coragem que me comove. 

Como a moça que no sábado por volta da meia noite saiu de Lisboa, onde vive, rumo à aldeia natal, para acudir  a pais e avós cercados pelos fogos. Conseguiu chegar, passando por estradas em chamas, com cadáveres ainda a arder nas bermas, num percurso inverso ao daqueles que morreram na fuga.
Lá continua, e disponibilizou o número  de telefone para ajudar a encontrar desaparecidos, conforme post da Sofia Cipriano:
"A minha amiga Teresa é de Pedrogão Grande e esta lá a ajudar no que pode. Ela pediu para avisar: Se souberem de alguém à procura de pessoas desaparecidas, digam para ligarem de imediato para o seguinte contacto: 236488060. Obrigada"

O povo é o mesmo, as pessoas é que não.

domingo, 18 de junho de 2017

Vergonha!

Ainda um destes domingos, um vizinho que muito considero me deu descompostura por ir regar, em manifesto desrespeito pelo dia santo e por aqueles que nele acreditam.
Hoje, já com as notícias da tragédia da noite amplamente divulgadas, na aldeia vizinha, Alpedriz,  anunciam a festa da terra com prolongada salva de foguetes.
O respeito que se defende abrange os dias santos, mas não os pinhais nem os mortos.
Povo estranho. 

segunda-feira, 22 de maio de 2017

Da queda familiar para os negócios

 O meu pai já tinha vendido a fruta com melhor calibre e aspecto. Mas na adega, que outrora fora de vinho, empilhavam-se caixas com pêras e maçãs miúdas, verdoengas, algumas com pedrado.

Terá sido sugestão de companheiro de copos, dos muitos que nas férias convidava para a adega nos quentes serões da aldeia:

— Não vendes esta fruta?

— A quem? Os compradores não a querem!

— Se a levares para o mercado de Pataias desaparece tudo enquanto o Diabo esfrega um olho!

— Mesmo a miúda?

— Tudo! Lá vende-se tudo! 

Ei-lo que sobe ao primeiro andar, eufórico:

— Amanhã vamos a Pataias vender a fruta da adega.

Resmunga a minha mãe: — Só se fores tu! Eu não sou vendedeira de praça!

Ele insiste. Lá vende-se tudo num instante, barato que seja, evita estragar-se. 

Discutem. E a Ana, a pôr água na fervura: — Vamos, avó, eu vou consigo.

Com a companhia da neta, a minha mãe cede. — Mas tu, insiste para vincular o meu pai, ficas também a vender.

O meu pai diz que sim. Mas logo à chegada ao mercado, a pretexto de ver a concorrência, desandou, deixando-as sozinhas, com as caixas de fruta miserável, à espera dos compradores. Que, invariavelmente, optavam pelas bancas bem apresentadas, com abundância de produtos variados.

Demorou a voltar. Deve ter parado nas barracas de comes e bebes, uma bifana e uma cerveja ou copo de tinto, larachas com vendedeiras, cavaqueira com vagos conhecidos.

Queixa-se a Ana da má apresentação do produto, mostra-lhe as bancas de sucesso.

Ele concorda com largo sorriso — concordava sempre com a neta. 

— Mas tivemos azar com o dia. Isto hoje está fraco, os outros também se queixam do mau negócio.

Venderam dois quilos, que nem pagaram o terrado...

terça-feira, 16 de maio de 2017

Ainda a omissão do artigo

Perguntei há uns dias se esta omissão,  recorrente na minha escrita, dificultava a leitura ou irritava o leitor. Na impossibilidade de o fazer individualmente, que as respostas no zfacebook foram numerosas e unânimes -- não dificulta nem irrita, ao contrário do que comentou leitor do meu blogue -- aqui vai o meu agradecimento a todos os que me quiseram ajudar. 
Entretanto, consegui encontrar a Estilista da Língua Portuguesa, de Rodrigues Lapa, obra que muito prezo e recomendo vivamente a todos os oficiais do ofício da escrita. 
A omissão do artigo definido é fenómeno muito mais antigo e generalizado do que a crítica do leitor do meu blogue me fez crer. 
Afinal, não sou original, antes continuador de longa tradição e de prestigiados mestres...

quarta-feira, 10 de maio de 2017

Ajuda: o meu estilo de escrita

Levo as críticas muito a sério. Mais do que os elogios. porque me obrigam a reflectir e, caso lhes reconheça pertinência, a atalhar caminho.

Semanas atrás, um visitante  deste blogue fez-me o seguinte reparo:

"... não aprecio a falta dos artigos nas frases seguintes: "... seguem travesti mais produzido..." e "... assistem pacatos a revista com umas piadas...". 

É uma marca de estilo recorrente e muito visível nestes seus escritos: aparece quase sempre. Mas soa-me mal e soa-me de todas as vezes que a leio, o que a torna ruidosa. Pode ser defeito meu, mas na minha construção da leitura prefiro a concretização mesmo indefinida de um artigo a esse vago que gera de modo propositado. "

Tenho reflectido sobre esta crítica, mas não me consigo decidir. Note-se que não é a gramaticalidade das frases que está em causa, mas um pormenor estilístico, e mal do autor sem estilo próprio. Por outro lado, este pormenor estilístico pode tornar-se, como diz o meu crítico, ruidoso e desagradável.

O que acham? Agradeço todas as contribuições.

sábado, 29 de abril de 2017

Primores

Colhidas ontem, descascadas há pouco, sentados ao Sol.

quinta-feira, 27 de abril de 2017

O direito e o avesso

Macron quis visitar uma fábrica de electrodomésticos que vai ser deslocalizada para a Polónia (a Wirlpool) e foi recebido com manifestações violentas, acabando a falar para as televisões no gabinete da administração; Le Pen apareceu de surpresa, e foi recebida com simpatia idêntica à de Jerónimo Sousa quando visita operários em luta: com exuberantes manifestações de carinho, beijos e abraços.

Para aqueles operários, Macron é o símbolo do capitalismo apátrida e da globalização; Le Pen, uma amiga que, como eles, quer o regresso à velha França, com fronteiras onde seria possível manter os direitos laborais penosamente conseguidos em duras lutas, não raro com sangue derramado. (Pourquoi ont-ils tué Jaurès?, perguntava Jacques Brel)

Não perco tempo com chavões, colagem de etiquetas a um e a outra, menos ainda a confundir os meus desejos com a realidade, e a realidade é o que dela fizemos, ou fizeram por nós os sátrapas deste capitalismo selvagem, que não quer fronteiras, nem direitos laborais, nem protecção do ambiente, e por isso mesmo deslocaliza para onde possa, ainda, explorar e destruir impunemente, na esperança de, quando tal não continuar a ser possível, substituir todos os trabalhadores por robôs — que não exigem salário nem fazem greve.

E assim, com os olhos atentos à realidade operária de França, não ficaria surpreendido se, como já aconteceu com Trump, essa realidade que as esquerdas tanto valorizavam, "le peuple", votasse com o coração e não com a razão, até porque a razão parece ser a do mal menor — e interrogo-me se é o mal menor para quem acaba de perder o emprego ou para o grande capital...

terça-feira, 25 de abril de 2017

Todos voltarão ao pó

"... todos foram feitos do pó, e todos voltarão ao pó." (Eclesiastes, 3.20)



Hoje, o vento espalhará o seu pó pela serra que escolheu. Ficam as memórias de 45 anos de amizade fraterna, e muitas fotos, a recordar os numerosíssimos momentos que partilhámos.

quarta-feira, 19 de abril de 2017

Sob a influência de Fernão Lopes

É antiga a minha admiração por Fernão Lopes, que considero um dos mais talentosos prosadores portugueses de todos os tempos. A interacção com o leitor ("como não queríeis que maldissessem sa vida...") levando-o subtilmente a tomar partido, a capacidade para nos envolver ma acção ("ora esguardai como se fôsseis presente"), a construção de personagens individuais, como Leonor Teles ou Nun' Álvares Pereira, as movimentações do povo de Lisboa ansioso por dar vida e escusar a morte ao Mestre de Avis, a descrição dos padecimentos da cidade durante o cerco, a narração cinematográfica da batalha de Aljubarrota, e do temporal que impediu o Mestre de cobrar Sintra, estão seguramente entre as melhores páginas que alguma vez se escreveram em Português. 
Foi sob a sua influência e de Lazarilho de Tormes, obra-prima da picaresca, que escrevi romance que principia em 1383, aquando  da morte do Conde Andeiro e do Bispo de Lisboa e a populaça amotinado manda nas ruas. Eis um fragmento, em que o protagonista e narrador escapa com dificuldade a linchamento por acusação de pedofilia.

"Acordei estremunhado com gritaria que alvoroçava toda a Travessa do Mata-Porcos, mas antes que assomasse à janela a apurar o motivo da algazarra, entra-me quarto adentro a dona da moradia acompanhada de brava regateira que arrasta consigo pela orelha moço. Olham em volta e não encontrando meu primo, viram-se furiosas para mim, atravessam-se-me à frente, impedindo-me de deitar a mão à espada pendurada em prego na parede ao lado da cama, a regateira empurra-me contra o tabique, deita-me as manápulas à camisa de dormir: onde estava esse canalha, meu primo, que lhe sodomizara o filho?
Olho-a aparvalhado, de nada sabia. Quando tal sucedera?
Não importava, berrava. Não viera a discutir calendários, mas a exigir reparação. Ou acusava-o na justiça e, quanto mais não fosse pela má fama que tinha, não se livraria de ser dependurado como tordo na boiz. Onde estava?
A gritaria atraía mais e mais gente, primeiro mulheres das vielas e da vida, logo seguidas por rapazes vadios que jogavam à bilharda na rua, homens desocupados que por ali arrastam os dias, toda a gente revoltada contra os fidalgos pervertidos que, lá por serem ricos e poderosos, se arrogam o direito de abusar das pobres crianças indefesas, e tantos e tantas entraram porta adentro que o pequeno quarto depressa ficou completamente atravancado, eu espalmado contra a parede, sofrendo safanões, piparotes, injúrias, como se fora o acusado. Tentava protestar a minha inocência, a ignorância do sucedido, mas ninguém queria ouvir as minhas razões: — Cala-te que és igual a ele. Família, farinha do mesmo saco.
A indignação popular crescia: — Ah, isto agora mudou de figura, acabou-se o tempo do “quero, posso e mando”, doravante outro galo cantará, que já não têm quem lhes acuda por parte da aleivosa da rainha!
— Hão-de pagar, senhora comadre, por aquilo que fizeram, por aquilo que nos têm feito, por aquilo que nos fariam se os deixássemos! Este já não escapa e o outro, quando lhe deitarmos a mão…
E das escadas, sem conseguir entrar, o taberneiro judeu grita que comêramos e bebêramos do seu sem pagar. Para não ficar atrás, berra a minha senhoria que lhe devíamos o aluguer do quarto. E a criada gorducha das redondezas acusa-me de dela haver abusado – fora ela a convidar-me, seduzida, ao que então me dissera, pela minha juventude e beleza, naquele tempo em que eu, receando ser sodomita, trabalhava para esclarecer as dúvidas e fatigar o que supunha ser a causa do pecado. E, acrescentava altas vozes, com ela fizera porcarias que são contra a nossa santa religião – - coisas que ela me ensinara, no seu gozo da minha virgindade, dessas a que as mulheres recorrem quando querem contentar os homens e receiam emprenhar -- pelo que se não admirava que também houvesse penetrado o pobre rapazinho no cu, pois a ela o mesmo fizera, isto depois de a desvirginar — e ninguém ria! 
Encostado à parede, via-me já como o pobre Bispo, como o tabelião e o prior de Guimarães que com ele jantavam, mortos sem por quê, lançados da torre da Sé afundo, desnudados, mutilados, a apodrecer em plena rua devorados pelos cães, roídos pelas ratazanas, infestados pelas larvas das varejas, sequer sem enterro cristão. E tomado pela cobardia que, por vezes, acomete até os mais valentes, gritei: – Mas é a meu primo, o senhor fidalgo Álvaro Domingues, que esta senhora acusa. E ele não está. Eu nada tenho a ver com isto, nunca vi o moço mais gordo!
O ruído enfraqueceu. E eu continuei: — Esta mulher acusa a meu primo, não a mim. E não diz quando ocorreram os acontecimentos...
E ela: – Quando? Ora toda a gente sabe. De há meses para cá. Ainda ontem...
Interrompi-a triunfante: – Mentes, má puta velha! Há mais de uma semana que meu primo saiu de Lisboa, a juntar-se à hoste de D. Nuno Álvares Pereira, acrescentei, na esperança de que o patriotismo e a adoração por D. Nuno sossegassem a populaça.
Mas a velha era osso duro de roer: –- Teu primo e tu são unha com carne. Ambos pervertidos e invertidos. Basta ver que dormem juntos, na mesma cama, dizia e apontava com gesto largo a estreita cama que partilhávamos. E virando-se para o filho, rapazote dos seus quinze, dezasseis anos, a penugem do bigode a despontar: – Este também foi? E perante o olhar duro da mãe, o moço aquiesceu com meneio de cabeça. E a velha, triunfante: – Diz alto o que te fizeram estes malandros.
— Tenho vergonha…
— Ou contas ou arrebento contigo antes de arrebentar com o fidalgote!
 — Tomaram-me à força, numa esquina do Poço do Chão, e fui por eles fodudo no cu...
 — Por qual deles?
Pois não o sabia. O olho de trás é furado, acrescentou com esgar malandrino. Talvez até por ambos… 
A fúria da multidão recrudescia. Pouco lhes importava que fosse inocente ou culpado. Afinal todos somos pecadores, assim reza a nossa santa religião, os maiores de todos são os poderosos, a mim não faltariam portanto pecados nem acusadores — se não foi teu primo foste tu, matam-se primeiro, o Senhor apurará depois a inocência ou a culpa e proferirá sentença em conformidade. E uma jurava altas vozes por tudo o que há de mais sagrado que sim, eu era sodomita, vira-me embrulhado com um rapaz, demais a mais judeu, aos beijos na boca e com lambuzadelas como os cães, em tal pouca-vergonha que nos enxotara dali para fora, e cresciam de novo para mim, arrepanhavam-me a camisa, empurraram-me para fora do quarto, lançaram-me escadas abaixo sob socos e pontapés, arrastaram-me pelos pés para o meio da rua enquanto troçavam cruelmente das minhas misérias que a camisa de dormir enrolada ao pescoço não lograva esconder, cuspiam, escarravam, atiravam terra e pedradas à pobre tripazinha que culpavam de haver penetrado rapazinhos, quando a velha, receando que pusessem cobro a meus breves dias com crueldades terríveis antes de haver em mãos o provento do ardil, se interpôs entre mim e a turba: – Pagas já em dinheiro pela desonra e maldades que fizeste a meu filho, ou preferes pagar com o corpo?
E ouvi na multidão a homem que se mantém de mulheres, certamente indignado por algumas delas me haverem ofertado seus serviços: – Paga primeiro em dinheiro, depois com o corpo
 — Pagas ou não?, berrava a regateira, enquanto me sacudia violentamente pelas abas da camisa de dormir.
— Eu também quero o meu dinheiro da vitelinha e das sardinhas comidas e jamais pagadas!
— E eu, os meus alugueres atrasados! 
— E eu, esganiçava-se a criada gorducha sem que nenhum a não desmentisse, exijo reparação por me haver desonrado!
E todos em uníssono:
— Primeiro a mim, que para isso cá vim e me fodeu o rapaz no cu!
— Não, a mim, que me papou as sardinhas e a vitelinha e me mamou o bom vinho!
— A mim, que fui por ele desvirginada!
E eu, apavorado, que em situações como aquela qualquer valente se acobarda, nem ousei continuar a protestar inocência: — Pago.
Prontamente todas as mãos se estenderam. 
 — Comigo não tenho..., mostrando com gesto a nudez, que a camisa de dormir enrolada ao pescoço não ocultava.
 — Vamos então buscar a contia ao quarto de Vossa Senhoria. 
Sempre debaixo de repelões, safanões, estaladas, que todos queriam molhar a sopa e fazer justiça por suas mãos além de receber as contias cujas suas diziam ser, empurravam-me para dentro de casa, depois escadas acima até ao cubículo onde dormia. Nem tentei protestar que lá também nada tinha. Antes, num daqueles relances de ousadia em que a juventude é fértil, sacudi as mãos que me empurravam, entrei lampeiro como se tivesse a enxerga forrada a dinheiro, de um pulo alcancei a espada, feri aos mais próximos sem gravidade, apenas cortes que os fizeram recuar de surpresa e de dor, e antes que me acometessem enraivecidos pelo logro e pela reacção, saltei pela janela para os telhados e corri, corri desalmadamente sempre perseguido por rapazolas, entre os dianteiros o que me acusara de o haver fodudo no cu, enquanto em baixo, pelas ruas e vielas me perseguiam os homens, mais atrás corriam as mulheres ululando por vingança, sangue, castigo cruel para pederastas e sodomitas. E eu, com asas nos pés, pulava sobre casas, saltava de ruela em ruela, telhas partiam-se à minha passagem, uma vez ou outra quase cai dentro dos sótãos, até que, junto à Sé, avistando a prelado a subir indolente a rua, saltei para a rua, tomei-lhe as rédeas, apeei-o da montada sob a ameaça da espada e, enquanto o diabo esfrega um olho, piquei a mula rua abaixo, finalmente a salvo dos meus perseguidores, apenas vestido com a camisa de dormir esvoaçante que nem sempre ocultava as partes pudendas, tão magoadas pela crueldade justiceira da populaça. Por onde passava, atraía a atenção e a mofa, uns a chamarem outros: — Mestre, venha cá fora ver isto! 
E gritavam-me, com a falta de respeito a que, melhor ou pior, me ia habituando: 
— Fidalgo, foges de marido sanhudo? 
— Ná, é de puta a quem ficou a dever.
— Taberneiro. Taberneiro, que o fidalgo é ruim caloteiro..."
JCC

sexta-feira, 7 de abril de 2017

Lisboa, anos setenta

"Lisboa parece adormecida, como se a chuva a tivesse anoitecido prematuramente, há-de chegar o tempo em que nunca dorme, por agora apenas no Bairro Alto, no Cais Sodré, no Intendente, há arremedos de diversão nocturna, se se pode chamar diversão a arruaças protagonizadas por marinheiros bêbedos da esquadra americana que mal fundearam no Tejo logo correram às putas, outros, de gostos diferentes, fingindo que o fazem por brincadeira, seguem travesti mais produzido que corista do Parque Mayer, onde os burgueses assistem pacatos a revista com umas piadas políticas benevolamente toleradas pelo regime, e o travesti vai ser famoso na sua velhice, quando, mais plastificado que estômago de tartaruga marinha, fizer as capas das revistas de cabeleireira, por viela escura dois marines seguem o R, dos Marinheiros alcunhado, poeta famoso e paneleiro lendário, lá mais para a noite estalarão as tais rixas, pancadaria rija entre os bravos chulos lusos, quais cavaleiros andantes a baterem-se por suas damas, e estes americanos amaricados — que dentro de poucas semanas receberão baptismo de fogo no delta do Mekong e em feroz batalha provarão, mais uma vez, que para a guerra não há como os panascas, como é sobejamente sabido desde os duros espartanos, o grande Filipe da Macedónia, o seu filho Alexandre, magno conquistador e maior pederasta, Júlio, César Augusto, o homem de todas as mulheres e a mulher de todos os homens, os famosos generais ingleses…

Afora putedo, paneleiros e revista no Parque Mayer, a vida nocturna da cidade resume-se a convívio pacato de oposicionistas nos seus cafés, na cervejaria Trindade, também os estudantes se encontram a pretexto do estudo nos cafés, alguns estão no Apolo 70 a ver A Semente do Diabo, e pouco mais, a capital do Império é serena, vive tranquila entre portas, culpa das televisões compradas a prestações que fixam as gentes nos seus lares, eléctricos e autocarros circulam quase vazios, o metro fechou antes da meia-noite, e a cidade repousa já, das Avenidas Novas até às barracas de Chelas, onde chega de táxi o Zé, acompanha-o outro Zé, mas tratemo-los pelos pseudónimos revolucionários, Pedro e Gustavo, adoptados a partir das iniciais do Comité de Luta Anti Colonial do Instituto Comercial, o "Guerra do Povo"."



Inédito meu, de romance em construção.


terça-feira, 21 de março de 2017

Recordações


Foi no Inverno de 1983 que soube da existência de um clube de karaté próximo -- em Torres Novas. 
Chovia torrencialmente quando abri a porta e pedi para entrar. Como resposta, apenas um aceno de cabeça de um dos dois cintos castanhos que treinavam juntos e prosseguiram o combate sem me darem a menor importância.

Eu, impaciente, tiritava de frio no pequeno pavilhão gelado, húmido, desconfortável, quase despido; num dos topos uma engelhoca para bater (makiwara, saberia muito depois), no outro uma cortina preta atrás da qual se mudava de roupa e um cartaz, imperativo e lacónico:
CULTIVA O SILÊNCIO
Quando finalmente terminaram o treino, uma boa hora depois da minha chegada, pedi para entrar para o clube. A resposta foi desanimadora: não me podiam dar muita atenção. 
Mesmo assim, insisti. Admitiram-me, na certeza de que desistira depressa. Bem enganados estavam!

segunda-feira, 13 de março de 2017

Um panfleto

Em 1973, o tipo que no ano anterior me tinha recrutado para CLAC (Comité de Luta Anticolonial) foi preso pela Pide e falou, denunciando um rol de gente das estruturas dirigentes do MRPP e organizações satélites. 
Embora o meu nome não surgisse nos autos, ou pela minha insignificância, ou para ficar como isca para captura de peixe mais graúdo, seguindo as orientações transmitidas pelo meu controleiro, deixei o Instituto Comercial, fui secretamente viver para Leiria, que conhecia dos meus tempos do Curso Comercial, com o projecto de trabalhar como vidreiro na Marinha Grande para me ligar, e ao Movimento, ao meio operário da região.
Mas nas fábricas de vidro, já em crise, apenas admitiam filhos de trabalhadores, que entravam finda a escola primária como aprendizes, não 'velhos' de dezanove anos, e acabei por trabalhar em Leiria, primeiro servente de pedreiro, depois operário de plásticos e viver na Marinha Grande, dependente dos raros autocarros da rodoviária para as deslocações diárias, até que ganhei para uma bicicleta usada — e por pouco não morri, uma noite atirado para a berma por carro desembestado, noutra, de escuridão profunda, em choque com bicicleta sem luz... Outras histórias, para outra ocasião.
Quando saía do turno à meia-noite, tinha de aguardar pelo autocarro das oito, oito horas de espera, mal preenchidas com agitação nocturna na cidade adormecida, e pouco tempo depois lá voltava eu ao café de umas bombas de gasolina, o único que estava aberto durante toda a noite, e por lá ficava a um canto, uma bica, um rissol, a ocupar o tempo a escrever. Panfletos como este, redigidos nas costas de ficha de controle da minha produção, que depois haveria talvez de bater à máquina, imprimir na maquineta, esse copiador artesanal, e pela calada na noite deixar debaixo de automóveis estacionados, uma pedrinha em cima, para que só fossem descobertos muito depois de eu por lá ter passado. Ou poemas – textos empolgados, abundantemente adjectivados, recheados de metáforas e imagens, que há muito destrui.
Sobreviveu estranhamente, miraculosamente, este rascunho, exemplo da propaganda que então se fazia — quem a fazia! — contra a guerra colonial e o regime fascista. Demagógico, recheado de lugares comuns, com erros de ortografia, foi um produto das circunstâncias que vivi. 

sábado, 11 de março de 2017

11 de Março de 1975

11 de Março de 1975
(Reposição)

No dia 11 de Março de 1975, tinha eu vinte anos e tinha sido incorporado no exército em Janeiro desse ano. Fazia a minha recruta no Regimento de Infantaria de Leiria (RI7) como instruendo e ia começar a minha semana de campo. 
Na véspera, fomos informados dos planos: ao alvorecer, chegariam helicópteros, embarcaríamos e seríamos lançados numa pista de técnica de combate, em condições muito próximas do combate real nas colónias. Formámos na parada, equipamento completo (farda nº 3, arreios, cantil, carregadores vazios, G3, etc.) e ficámos horas a olhar para o céu, à espera da chegada dos hélis, um pouco assustados, que a guerra nunca é uma brincadeira, mesmo em treinos. 
A meio da manhã, sem esclarecimentos, mandaram-nos marchar e atravessámos a cidade ao toque de tambores, algo vaidosos, o trânsito interrompido à nossa passagem, quatro companhias, rumo aos Marrazes. Ainda de longe, ouvíamos já o estrondo grave do rebentamento das granadas, o matraquear das metralhadoras, os tiros constantes das espingardas G3, até o som amaricado de uma ou outra pistola-metralhadora Vigneron. 
As ordens chegavam já berradas, Tá a formar em bicha pirilau! Corram! E nós corríamos, sem saber para onde, atrás do camarada da frente, por entre o chinfrim infernal e o cheiro da pólvora. Então o da frente estaca, detenho-me também, passa camarada enlouquecido, sem que o furriel ranger que o perseguia o conseguisse deter, coxa a jorrar sangue às golfadas: tinham-lha furado com bala real. Gritam-nos para continuar, perco o medo, se já lixaram um vão ter mais cuidado com os outros. E corria por cima de troncos sobre riacho enlameado ainda com muita corrente, rastejava por debaixo do arame farpado enquanto assobiavam balas (o tiro estava regulado em altura, não devíamos levantar a cabeça, por isso a afundava na lama, já nem ligava aos tiros, era certamente munição de salva, nem às granadas de treino, azuis, que lançavam de todos os lados, inofensivas como bombas de São João, e liberto do arame farpado corria pelo leito do riacho, sempre por entre a berraria de oficiais e furriéis, ouço um gritar O pequenino é o melhor, então surge-me pela frente um tenente e lança uma granada ofensiva bem para cima de mim. Mergulho no lodaçal, estoira a granada, só quem já assistiu sabe do poder do estrondo, da violência do sopro, de resto são inofensivas, levanto-me prontamente para continuar a correr por ali abaixo, mas o braço direito, sempre segurando a G3, estava imobilizado. O tenente puxa-o, parece voltar ao sítio, continuo, só mais tarde soube que tinha uma lesão para o resto da vida. 
E subitamente tudo acaba para mim, camaradas do meu pelotão recebem-me risonhos, estamos felizes, sobrevivemos, não fugimos, não chorámos, abençoados palavrões, por isso nunca os desperdiço. 
Correm boatos: há guerra em Lisboa!  A disciplina prevalece, obedecemos às ordens, formar, marchar, começar novas e extenuantes provas, sempre debaixo de berros, tiros, explosões. À noite, para dormir, manta reles, um pano de tenda, com quatro faz-se um bivaque, o frio e a humidade são terríveis, os camaradas de "quarto" vão para uma fogueira, eu, doido com sono, morto de cansaço, durmo ali, sobre água que corre pelo chão, enregelado, a custo me despertam para o meu turno de sentinela, nevoeiro de cortar à faca, que guardo eu ali, no pinhal, sem uma única bala no carregador?
À alvorada, formamos e regressamos ao quartel, a semana de campo durou um dia, não tocam bélicos os tambores, marchamos como vencidos, envergonhados, para não atrair a atenção do povo. No quartel, contam-nos factos e boatos, ninguém sabe bem o que se passa, parece que os pára-quedistas atacaram o Ralis nos nossos helicópteros, há mortos e feridos, e olhamos constantemente para o céu, receosos de que desçam sobre nós, discutimos se os tentamos abater no ar ou os deixamos poisar primeiro, os corpos tremem, é frio, é medo. 
Grita fora o povo, somos fascistas e não o sabíamos, mandam-nos para a carreira de tiro interior fazer fogo com as HK21, na esperança ingénua de que o matraquear das metralhadoras afugente a multidão. À noite, mais boatos: os americanos preparam-se para desembarcar nas nossas praias, é a contra-revolução fascista do Spínola que aí vem. E um furriel, apavorado, pede-nos aguardente, vai sair com uma companhia de prontos para defender a Praia da Vieira de ataque iminente dos marines. 
Na manhã seguinte, 13 de Março, andamos em pequenos grupos pela parada, nenhum oficial aparece, os furriéis sabem tanto como nós, e desce um héli, não são pára-quedistas, são jovens oficiais, muito jovens, com patentes demasiado elevadas, que logo reúnem com o comandante. Acabamos por saber que foi demitido, o povo está com o MFA e tretas do género, eis que chega a época dos comícios, dos oficiais de aviário, ontem eram alferes, hoje são majores, começam os fins-de-semana cortados por prevenções rigorosas que vem aí o espectro da contra-revolução e esses valentes oficiais juram punho erguido que então morrerão com as botas calçadas a combatê-la – para se esconderem cobardemente no 25 de Novembro, mas essa é outra história, em que também estive envolvido, bem contra vontade.

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Onze anos!

O Afonso, o meu primeiro neto, nascido poucas horas antes. Onze anos de convívio e de camaradagem voaram entretanto, repletos de alegrias, um ou outro susto. Parabéns!

sábado, 18 de fevereiro de 2017

Graças a Deus e graças com Deus

Eu era atentador. Judeu.
... os judeus são muito ruins! , sentenciava a minha avó.
-- Porquê? Perguntava, apenas para a arreliar. 
-- Então! Mataram Nosso Senhor!, exclamava, espantada com tanta ignorância.
-- Mas ele também era judeu!
-- Não digas heresias! Sempre ouvi dizer "graças a Deus, e não graças com Deus!"