Número total de visualizações de páginas

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Deus existe?

 Deus existe? (Comentário a um post alheio)


Há dois problemas que condicionam tanto as perguntas como as respostas: (1) a linguagem que formula as primeiras e enforma as segundas e (2) os nossos cérebros de primatas, que percepcionam o Cosmos a partir de sentidos que não evoluíram para o compreender, mas para sobreviver nas savanas africanas.

Pensamos com palavras e, como notou Saussure, o pai da linguística, sem elas talvez nem exista pensamento estruturado, ou, pelo menos, pensamento abstracto; mas, todos sabemos,  as palavras e a lógica que com  elas se constrói não são necessariamente conformes à realidade observada (e.g., o Sol nasce de manhã) e não  são seguramente adequadas para formular questões metafísicas: que é Deus?  Se falamos do Jeová bíblico não será difícil negar o seu papel criador, mas se a hipótese de muitiversos nos parecer pouco elegante haverá que procurar hipóteses explicativas para o facto - assombroso - da perfeita afinação das leis físicas.

A nossa capacidade de conhecer o Cosmos parece ser,  também, limitada pela nossa estrutura cerebral, se assim posso dizer: até ao momento, e com toda a nossa tecnologia, conhecemos apenas 5% do Universo; aos 95 % em falta, chamamos energia e matéria escuras. E não fazemos ideia -eu não faço - do que seja o Espaço ou o Tempo, nem se a luz é corpuscular ou ondulatória, etc.

A pergunta Deus existe? pode nem sequer fazer sentido. Nada obriga a que o signo  tenha correspondente (o referente saussurreano) e  nada garante que, no estado actual da ciência, se surgissem  possíveis respostas tivessem significado compreensível para nós. 

Deposito as esperanças nos avanços da ciência, com o receio de que as respostas  não cheguem no meu tempo. Um contacto com civilização alienígena também poderia trazer alguma luz. Enquanto tal não sucede, sinto-me como a rã no fundo do poço. Da ignorância. Crente, agnóstico, ateu? Um pouco disso tudo, conforme o significado atribuído às palavras.

sábado, 8 de julho de 2023

O teu ioiô

 Enquanto deixo passar a hora de maior calor, ouço na televisão um cantor: "Tu passas por mim com o teu ioiô". Se tivesse uma voz   prodigiosa , até podia pedir um Mercedes Benz e uma televisão a cores, como a Janis Joplin, que nos deixava deslumbrados. Mas a voz é banal, talvez uma terceira voz dos meus tempos de ciclo preparatório — eu era da quarta, e da única vez que me atrevi cantar levei uma bofetada do mestre de Canto Coral — que se aproveita, então? A música pimba, igual às outras do género? O “boneco”?

 Deixo de lado a voz, um dom que se pode trabalhar, se houver por onde, e a música, arte que deveriam estudar tendo em conta o métier escolhido. Fico pelas letras, certamente o mais acessível.

Ora  sempre me admiro quando os ouço e dou por mim a comentar: mas esta gente não se ouve, não se enxerga? Querem trabalhar na música e são insensíveis à musicalidade das palavras, ou, no caso, à ausência dela? Suponhamos que relacionamos cada sílaba com uma cor. Que temos no citado verso? Um amontoado de cores sortidas, que não combinam entre si. Como é possível que se esmerem na composição do "boneco" e sejam tão desleixados, ou insensíveis, quanto ao que cantam?

Mais: como é possível que tantos artistas, de valor igual, pululem pelo país fora e encham as tardes de sábado das televisões, sem voz, sem música, com letras prosaicas e triviais? Onde esperam chegar? Ou a auto-satisfação por aparecerem na TV basta, desculpa, justifica tanto apego à mediocridade?

Pêlo na venta e sandes de presunto

A empregada do café tinha pêlo na venta. Era sobretudo com os proprietários de segunda geração, da idade dela, que espingardeava:

Hás-de arrumar essas garrafas de gás vazias… mandava o genro dos “donos velhos”.

Arruma-as tu, que tens bom corpo para isso! E bem folgado!

O patrãozinho fervia de raiva, ralhava.

E ela: Olha lá, porque é que me não despedes? Fico em casa a receber o subsídio de desemprego, e não tenho de te aturar!

Entrei com um amigo para almoço frugal, de trabalho no campo: Duas sandes de presunto  e duas cervejas, faz favor.

Abanou a cabeça: Comam de queijo.

Está bem, anui..

Mas o meu amigo é casmurro: Mas tem ali presunto, porque é que tem de ser queijo?

Interrompi-o: Não teimes, comemos sandes de queijo, depois explico-te.

Não se calou às primeiras. Comidas as sandes, bebidas as cervejas e o café, já fora, voltei à carga: Ó meu sacana, não percebeste que o presunto deve estar estragado?

Ah, era isso? Porque é que ela não disse?

Com a patroa ao lado e o café cheio?

quarta-feira, 10 de maio de 2023

O 1 de Maio de 1973

Meses de agitação intensa, as noites nas ruas a fazer pinturas, os dias em manifestações, tinham mandado para a prisão muitos de nós, alguns dos melhores de nós. Dois anos desta vida sem ser preso era prova da minha habilidade, do cuidado com que aplicava todas as precauções revolucionárias, evitando ser seguido, muitas vezes dormindo fora de casa, que era o meu quarto de estudante, na Rua Poço dos Negros. Também me faltava a coragem de me medir com a polícia e as suas torturas, de me querer pôr à prova para saber se, como verdadeiro revolucionário, enfrentaria sem ceder as torturas em Caxias, sobretudo a que mais receava: a do sono.

Por isso, ao contrário de outros que pareciam tudo fazer para serem detidos e na prisão ganharem o estatuto de heróis — ou descobrirem que ainda não estavam devidamente preparados politicamente como filhos do Povo para resistir a duas semanas de tortura do sono — eu evitava ser preso, arriscava o necessário, mas não mais, dissimulava-me constantemente, encorajado pelo meu controleiro, um clandestino.

Mas no primeiro de Maio de 1973 tinha o pressentimento, estava firmemente convencido de que seria finalmente preso — ou morto. Tirei do quarto todo o material comprometedor, livros, panfletos, equipamento artesanal com que os reproduzia e pu-lo a salvo em casa de amiga. Logo de manhã, como cristão que se prepara para a morte, assisti à nossa missa comunista, no cemitério junto à campa de Ribeiro dos Santos, o primeiro mártir da nossa causa.

Saldanha Sanches fez belíssimo discurso, comovente até às lágrimas: também nós devíamos estar prontos a dar naquela tarde as nossas vidas pela revolução.

Como condenado que vê os seus dias chegarem ao termo e se desforra na última refeição, gastei dinheiro que deveria durar mais uma semana em almoço em restaurante melhorzinho, bebi até -- luxo a que de ordinário me não podia dar — uma cerveja, Carlsberg. 

E à hora da manif, segui para o Rossio, pronto para o que desse e viesse. Habituado a manifestações com escassas dezenas de estudantes, sempre os mesmos, exceptuando aqueles que iam sendo presos ou desertavam da causa, assombrou-me ver a praça apinhada de gente, povo!, esse povo em nome de quem há tanto falava, que procurava agitar, trazer à rua, amotinar contra o regime. Do alto de um edifício, por cima do Diário de Notícias, a Pide (quem mais poderia ser?) filmava-nos ostensivamente, ameaçadoramente, e os populares faziam-lhe manguitos destemidos. Senti ali começar a revolução almejada.

Subitamente, a polícia atacou com canhões de água, empurrando-nos dali para fora, rua do Ouro abaixo. Avistei o meu controleiro, ali, à luz do dia: Vamos voltar para o Rossio e tomar a praça! 

Por todo o lado, cacetadas, espancamentos da polícia de choque, o capitão Maltês a comandar. Todos os acessos estavam barrados. Entrei em autocarro apinhado, que havia de entrar no Rossio, fiz comício no interior para trabalhadores assustados comigo, com a polícia que, fora, em todos, em tudo, batia. Vejam, quem trabalha leva porrada! Viva o primeiro de Maio! O primeiro de Maio é vermelho!, mas o condutor recusou abrir as portas dentro da praça, certamente para a polícia não entrar.

Batemo-nos noite fora. Escapei. Pouco depois, denunciado, abandonei os estudos e a capital, fui viver para a Marinha Grande, a trabalhar em Leiria nas obras primeiro, como operário de plásticos depois. Participei na organização do primeiro de Maio vermelho de 1974, na Praça Stefens, lição para os “revisas”, que a tal há muito se não atreviam. 

Deu-se o 25 de Abril, quando cheguei naquela manhã, pronto para a luta, os soldados que nos deveriam reprimir tinham cravos vermelhos nos tapa-chamas das G3, o ambiente era de festa, como se a guerra colonial tivesse acabado, os amanhãs já cantassem...

E nunca mais comemorei nas ruas o primeiro de Maio. 

terça-feira, 2 de maio de 2023

Um amigo perdido no tempo e no espaço

 O Vasco, via-se à distância, só podia ser um revolucionário: enorme, o mesmo sobretudo escuro de Verão ou de Inverno, boina basca sobre a desgrenhada cabeleira negra encaracolada e sebenta, barba imponente à Fidel de Castro, a tiracolo bornal militar comprado na Feira da Ladra, azedo no falar, quase grunhidos em algarvio cerrado. Inevitavelmente, pelo menos aos olhos dos estudantes, sobre ele recaíam as suspeitas de autoria e distribuição dos panfletos, da colagem dos “selos”, etiquetas autocolantes com palavras de ordem anticoloniais, das pinturas que volta-não-volta decoravam a fachada do Instituto; e ele, agradado com essa imagem, nada fazia para se livrar de suspeitas, antes pelo contrário, sempre que podia distribuía a propaganda associativa, por convicção, talvez também por desejo de brilhar e, eventualmente, vir a ser recrutado.

Tão exposto, parecia um perigo para as organizações clandestinas: um liberal, um pequeno-burguês, demasiado fácil de vigiar pela PIDE, útil, mas sem lugar nos comités clandestinos que se moviam nas sombras. Mas, se eu nada lhe confidenciava que sugerisse o meu envolvimento na luta clandestina, nem lhe dava “tarefas”, acabámos por partilhar um quarto na rua de Arroios durante dois meses.

Longe do Instituto, com as cantinas fechadas uma após outra pela polícia, as minhas despesas aumentaram tanto que nem a comer nas mais baratas das tascas para trabalhadores cabo-verdianos o dinheiro me chegava até ao final do mês — eu era boa boca, comia tudo, mais interessado na quantidade que na qualidade, mas, mesmo assim, a fome, crónica, endémica, atormentava-me. Como os cearenses de Josué de Castro, que tinha lido recentemente, também eu tinha a cabeça cheia de comidas imaginárias… o Vasco, mais abonado, sugeria-me que “tirasse” comida nos supermercados, como ele e outros revolucionários faziam frequentemente; mas não nasci para ladrão, e roubar, mesmo disfarçado eufemisticamente de “expropriação da burguesia” era, para mim, mais intolerável que a fome que me roía nesse final de Maio. 

Em desespero, escrevi à minha avó, perguntando se me podia enviar um coelho OU uma galinha. Dois dias depois, para minha surpresa, chegou à camionagem a encomenda, com um coelho E uma galinha! Vim a saber que um primo, ao ler a carta, que a minha avó já não tinha olhos para tal, trocou o “ou” por “e”. A namorada do Vasco cozinhou os bichos e, para se não estragarem, empanturrámo-nos com eles durante uns dias, tirando eu a barriga de misérias até à chegada da próxima carta dos meus pais, emigrantes na Holanda, com a mesada de Junho.

Findo o ano lectivo, separámo-nos. Embora amigos, não me convinha a sua curiosidade: onde foste, de onde vens, vieste tarde na noite passada, onde vais…

Só aí por 76 ou 77, nos voltámos a encontrar. Veio falar comigo a tentar demover-me: eu tinha apresentado pedido de demissão, certo da inevitabilidade de expulsão por “seguir a linha de direita”, como me acusava a miudagem ultra-radical entrada no pós-25 de Abril. 

O seu aspecto era o mesmo, mas o ar tenebroso era agora adequado: guarda-costas do Arnaldo Matos. E confidenciou-me: também ele só não tinha ainda mandado tudo isto à merda por causa do “homem dos bigodes“, a quem o ligava profunda lealdade e admiração.

terça-feira, 25 de abril de 2023

Onde estavas, Zé, no 25 de Abril? (Reposição)

Na Marinha Grande, a dormir.

Era uma da tarde e acordou-me a minha mulher, tínhamos casado um mês antes, para me dizer que, segundo boato ouvido na padaria, havia um golpe de estado na capital. "Pois sim, deixa-me  mas é dormir", devo ter respondido, com o sono de pedra dos vinte anos, e voltei a adormecer, não sobre fofo colchão, mas no chão, que cama não tínhamos. 

Naquela semana fazia na fábrica o turno da meia noite às oito e precisava desesperadamente de dormir. Também não tínhamos televisão nem rádio. Nem mobília nenhuma, exceptuando um mocho comprado no mercado.
Vivia na Marinha Grande e trabalhava (operário de plásticos) em Leiria. Motivos: estão em Do lacrau e da sua picada. Chego à cidade ainda de dia, procuro sinais de agitação, nada. Na Praça Rodrigues Lobo encontro o Luís Marques, o mais duro e o mais valente revolucionário que conheci, também ele na clandestinidade, que não via há coisa de um ano. A notícia do golpe de estado trouxera-o até à claridade. Tal como eu, não acreditava que viessem aí grandes mudanças: "Coisas do Spínola e dos spinolistas", terá dito, e eu acreditei. E fui trabalhar, porque o patrão também não tinha ouvido falar em revolução.
Muita coisa mudou. Logo nos dias seguintes, aqueles que até então nos insultavam quando nos manifestávamos nas ruas contra a guerra colonial e o fascismo, que telefonavam à polícia quando pela calada da noite pintávamos paredes, que nos denunciavam como perigosos agitadores comunistas ao encontrarem propaganda nos quartos alugados, reconverteram-se ao vermelho, mas só no cravo na lapela, e muitos tornaram-se guardiães do regime.
Apesar deles, do dia de trabalho para a nação, do fim da luta de classes que apregoavam, o país mudou. Tanto, e para melhor, que está hoje irreconhecível. 
Aos que fizeram a revolução, agradeço a criação de condições para acabar com a ditadura, a sua polícia política, a guerra colonial, para democratizar e desenvolver. Embora, não poucas vezes, tal ter sido conseguido contra eles -- mas, em dia de fes não é bonito lembrar tais coisas. 
Quanto ao povo, esse está nas praias, aposto, a festejar feriado a que dá tanta importância como ao 5 de Outubro, ao 1 de Dezembro, à Nossa Senhora Não-Sei-de-Quê...
Foto: nós dois, uns meses mais tarde.

segunda-feira, 24 de abril de 2023

Chico Buarque (reposição)

 Estávamos em 1972, havia a guerra colonial, a agitação constante nas universidades, as manifs nas ruas que o regime não lograva impedir, a música que nos chegava de fora, Brel, Simon&Garfunkel, Donovan, Chico Buarque, Patxi Andion, por cá a de José Afonso.

O meu primo, então a frequentar o Conservatório, pediu-me que comprasse bilhetes para concerto que Chico Buarque ia dar num cinema entre os Restauradores e o Marquês, esqueci o nome. Quando lhe entreguei o bilhete, 
— Compraste também para ti?
— Não. Estou teso...
Insistiu para que comprasse, quis pagá-lo ele. Recusei, e voltei ao tal cinema. Comprei o mais barato, para o poleiro, o último balcão. E lá me sentei, a ver no palco figuras minúsculas que tocavam os primeiros acordes — o conjunto do Chico (hoje diz-se banda), o MPB4. Na sala, gigantesca, uma pessoa aqui, outra ali.
Então, chega funcionário a pedir para nós, os do poleiro, nos sentarmos na primeira fila, para que Chico Buarque não actuasse para cadeiras vazias. Tive, assim, oportunidade de assistir ao seu espectáculo juntinho a ele.
Excepcional. Mas com fraca assistência, nem a banda a passar colocou a sala ao rubro. E o cantor, a determinada altura, desabafou: não sabia se as suas músicas eram apreciadas em Portugal, mas no Brasil quase ninguém as conhecia. 
Pois, cá, fora do meio intelectual, apenas a banda a passar tinha chegado às massas, embora na rádio se ouvisse muita música brasileira, eu quero buzinar o seu calhambeque e quejandos.
Ainda bem que tudo mudou. Chico Buarque, que talvez fizesse suas as palavras (creio que) de Brel, algo como não sou poeta nem músico, faço canções — conheceu no Brasil e cá a glória merecida pelo seu talento, enorme e diversificado (letrista, músico, actor, escritor), e acaba de ser distinguido com o Prémio Camões.
E eu tive o privilégio, graças à insistência do meu primo, de o ter visto no palco, tão perto que quase lhe podia tocar, quando era jovem, antes da consagração, e de me ter embevecido com a sua genialidade e a dos músicos que o acompanhavam...
(A time it was, and what a time it was, it was
A time of innocence
A time of confidences
Long ago it must be
I have a photograph
Preserve your memories
They're all that's left you
Simon&Garfunkel, Old Friends)

Entradas de leão…

Por meados da década de oitenta, chegou à minha escola um “agregado”, ou seja,  professor já com estágio profissional, a cumprir o ano obrigatório na província.

Calhou-me, no horário, ser director de turma como, aliás, já me tinha sucedido em anos anteriores, e competia-me dirigir a reunião do conselho de turma. 

Logo a abrir, esse agregado, professor de Filosofia, ataca-me brusca e abertamente:

— O colega é efectivo?

— Não!

— Então não pode presidir à reunião!

Nunca tolerei que me falassem por cima da burra. Que puxassem de supostos galões para me diminuir. 

— Fui nomeado pelo Conselho Directivo. Se não concorda, vá lá entender-se com eles.

Prossegui com a reunião, bem consciente dos olhares escarninhos e murmúrios em apartes do “colega” que, ainda o não sendo, se sentia já “efectivo”, a julgar-se numa dessas escolas em que os efectivos se tratavam entre si por senhor doutor, cultivavam o apartheid segregando os “provisórios”, com quem nem sequer partilhavam as mesas da sala dos professores.

Constava que, nas aulas, a sua postura era igualmente arrogante e prepotente, com completo desprezo pelos alunos, que insultava e ofendia constantemente, e corria a negativas.

E um dia, estava eu na minha hora de atendimento enquanto director de turma…

— Stôr, queremos apresentar queixa do professor de Filosofia!

— Porquê? E comecei a avançar dificuldades, mais por espírito corporativo do que por vontade.

— Chamou-nos “fufas”!

— E daí?

— O stôr sabe o que é isso?

Pois não imaginava. Mas, pela proximidade fonética, seria algo fofo…

— Fufas são lésbicas!

Não sabia. Se tinham a certeza. 

— À frente de toda a turma, que pode ser testemunha, disse “Estas fufas aqui…”

Confesso que estava interiormente satisfeito. O sacana que tentara publicamente rebaixar-me, lembrando o meu estatuto profissional inferior e pondo em causa a minha autoridade para dirigir aquela reunião, que quando calhava cruzarmo-nos nos corredores da escola, ou fora dela, nem bom dia nem boa tarde, apenas me deitava um superior olhar desdenhoso que eu fingia não perceber, ali estava, ainda sem o saber, à minha mercê.

E eu a fingir deitar água na fogueira da indignação das miúdas: talvez ele também não conhecesse o significado da palavra, talvez não tivesse sido com intenção…

Elas estavam determinadas. Sabia muito bem o que dizia, era arrogante, prepotente, insultava toda a gente nas aulas… Queriam fazer participação.

A custo, convenci-as a primeiro deixarem-me tentar resolver o conflito. Convoquei uma reunião de conselho de turma — e preparei-me para a guerra, com testemunhos, factos, datas. Dei conhecimento do assunto e ordem de trabalhos à direcção e eis-me, provisório “mini-concursiano” a dirigir a reunião em que se julgavam atitudes e comportamentos do colega agregado que começara o ano a questionar a minha legitimidade para exercer o cargo.

Li a participação das alunas, dei a palavra ao réu. A arrogância habitual, sobretudo perante professores provisórios, evaporara-se. Nem negou que conhecesse o significado de fufa, nem que chamasse outros nomes pouco abonatórios aos alunos. 

Os factos eram graves, reconhecia o conselho de turma unanimemente.

Um homem caído sempre me inspirou piedade. E então, maldade suprema, fui magnânimo.

Propus uma saída airosa para o desgraçado. Na acta, registar-se-ia vagamente a matéria discutida, referida como problemas de relacionamento e de linguagem inadequada utilizada pelo professor de Filosofia em momentos de exaltação causados por desinteresse dos alunos pela matéria. Ele ira pedir desculpa às ofendidas na aula e comprometer-se-ia a moderar a linguagem. Antes, reuni com as alunas e persuadi-as com muita dificuldade a aceitar a solução adoptada e a não prosseguirem com a participação recorrendo a instâncias superiores.

O confronto entre ele e a turma foi duro, vim a saber, humilhante, que não lhe perdoavam atitudes e palavras, mas acabaram por fazer umas tréguas inamistosas que resistiram até ao final do ano lectivo, quando ele foi para Coimbra certamente para ser feliz entre iguais e a poder pisar os “inferiores”…


quarta-feira, 12 de abril de 2023

Nada de novo sob o Sol

 As notícias são sempre inspiradoras. Uma, de ontem, fez-me procurar um texto meu já antigo, de que apresento o excerto final.

Qualquer semelhança a realidade, como tudo o que escrevo, nunca é mera coincidência. [Contexto: Faculdade de Letras, anos 80]

“As aulas eram erráticas, sem planificação, ao sabor dos seus humores. O professor, sempre arrogante, autoritário, sobranceiro com os alunos. Sardónico ao falar dos colegas da área, sempre pronto a destruir as nossas respostas às suas perguntas com mordacidade cruel, num desejo infantil, assim supunha eu, de se ver venerado. Mas havia mais, como vim a descobrir quando veio a “frequência”. Que, inevitavelmente, me correu mal.


— S’tôr, quando é que entrega os testes?

— Não  entrego. E do alto da sua estatura, ampliada pelo estrado, passeou olhar de gozo pelo Pavilhão Velho repleto de alunos incrédulos, a  apreciar o efeito, a saborear o burburinho de protesto.

Depois acrescentou: — O departamento não permite, mas podem passar amanhã pelo meu gabinete para os ver e  saber as notas.

Bom, à hora aprazada lá estávamos, eu e uma colega, autêntico mulherão.

— Você, disse-me, teve onze. Espantei-me. O teste não tinha sinais de ter sido corrigido. Mas ele era o deus único e verdadeiro da linguística e eu estava, tinha consciência disso, mal preparado pela leitura apressada de fotocópias e apontamentos dispersos e desconexos. 

Onze dava para passar, era o que eu queria.

— E você, disse à boazona minha colega, teve sete.

— Sete? O s'tôr está a brincar comigo!

O s'tôr ria. E ela teimava: — O s’tor só pode estar a brincar comigo!

Com pressa para o comboio — trabalhava à noite, a cem quilómetros, estudava de dia — deixei a minha colega a insistir que  o professor só podia estar a brincar com ela. Até porque me sentia a mais, com ele a propor-lhe irem os DOIS tomar um café fora da faculdade enquanto discutiam a nota.

No dia seguinte, encontro-a na faculdade: — Vês, o professor sempre estava a brincar comigo! Tive dezassete!”

quinta-feira, 6 de abril de 2023

Batalha dos Atoleiros

 Há 639 anos, neste dia 6 de Abril, o meu Rodrigo Pessanho Semedo combateu na Batalha dos Atoleiros. Eis o seu testemunho.

“Aquela batalha, a primeira em que entrei, foi também a única em que não senti medo. A cavalaria castelhana carregou furiosa sobre nós e foi destroçada por uma chuva de setas e de virotões. Voltaram à carga, para se espetarem contra uma muralha de lanças que erguíamos firmes como D. Nuno ordenara, os pés bem afastados, as pernas fortes, os corações cheios de fé em Deus, que não nos negaria aquela vitória pois lutávamos na nossa terra e pela nossa terra. E de fé nele. E prouve a Deus Nosso Senhor que de tantos cadáveres que tombaram por terra nem um só fosse português... Eu mesmo encharquei as mãos em sangue inimigo ao derrubar jovem cavaleiro leonês que se aprestava a matar a meu primo, tendo-o logo de seguida decapitado com forte fendente quando se levantava; dele tomei como despojos o seu belo bacinete, o saio de malha, a montada e o escudo, em cujo brasão leão orgulhoso atestava a origem do moço fidalgo. A meu escudeiro deixei sua contia, vestes e ornamentos, que me pareceu coisa vil e indigna de homem de armas apropriar-se da riqueza do morto como se o houvera matado para o roubar. Era então ingénuo, cheio de pruridos que a rudeza da guerra cedo esfumaria — por isso, me afastei pesaroso do terreiro, desviando entristecido os olhos da mortandade: tantos e tão jovens cavaleiros, como eu cheios de ilusões e de esperanças, a lidarem por amor de suas donas e por lealdade para com seus senhores, ali jaziam por terra, despojados de suas armas, jóias e contias, despidos de seus ricos vestidos, muitos agonizantes em sofrimento atroz, soltando gritos de dor lancinantes quando a soldadesca, entregue à vil faina da pilhagem, os virava e revirava impiedosamente como se coisas sem préstimo fossem. O destino daqueles valentes poderia em breve ser também o meu...”

Gheke Pepe Bebiam mais do que falavam

quarta-feira, 29 de março de 2023

O teste extraviado

O teste extraviado*
(ao amigo S., que não vejo há quase meio século)
Chegámos ao primeiro teste de Contabilidade. Nenhum de nós percebia nada daquilo – e estudar, marrar, na nossa gíria, não adiantava. Era matéria esotérica, que escapava à nossa compreensão:
DEVEDORES
A CREDORES
Lá escrever em cursivo Francês ou Inglês, isso fazia-se. O significado era mais difícil de apreender, mas ainda se chegava lá, e percebíamos que era o oposto de
CREDORES
A DEVEDORES
por absurda que fosse esta situação.
Mas
MATÉRIAS PRIMAS
A EXISTÊNCIAS
era muito mais difícil de entender.
A professora – novinha, da idade dos mais velhos da turma – bonitinha, bata branca para que as contínuas a não tomassem por aluna, trazia-nos apaixonados, o que tudo piorava: se lhe bebíamos embevecidos as palavras, nada entendíamos delas, perdidos em sonhos de aventuras por terras longínquas, onde a salvávamos de feras, feitos Tarzan, e ela esqueceria a distância a que nos mantinha tratando-nos por “senhor”, garotos de quinze, dezasseis anos. E, qual Jane salva, cair-nos-ia derretida, agradecida, nos braços apaixonados...
Mas ali estava, frio, impiedosos, não um leão africano das savanas, um elefante enlouquecido, um urso polar nas gélidas planuras das tundras setentrionais – mas um teste, sem salvação possível, nem glória a cobrar.
Entreolhávamo-nos, trocávamos sinais, na esperança de que algum tivesse conseguido descodificar inteligível naquelas linhas manuscritas, ainda a cheirar ao álcool do duplicador. Mas em todos os rostos transparecia a desorientação; e então, escrevíamos qualquer coisa, para parecer que tínhamos compreendido aquela pergunta, a tentar conseguir uns pontos aqui e ali, não por respostas correctas, mas pelas vagas aproximações. Mas a Contabilidade, fria, racional, não se deixava enganar pelas nossas ingénuas tentativas, como viríamos a confirmas aquando da entrega dos testes:
– Senhor Catarino!
– Cipriano, stôra!
– Cipriano Catarino, 6,4.
E, vendo a minha expressão de desapontamento: – Com muita água-benta, que isto é só palha para encher.
Testes entregues, prepara-se para a correcção.
– Stôra, não entregou o meu teste!
– Pois não, senhor S.. Você entregou o teste?
Ele diz que sim. A professora estranha, o teste não se extraviou. Mas vai procurar outra vez em casa.
Aula seguinte, professora de feição muito séria, severa: – S. você entregou o teste?
– Entreguei, stôra!
– Você jura?
Ele jurava. Tinha-o entregado logo a seguir a mim. E eu, dividido entre a paixão, a verdade e a justiça, e a amizade pelo S., calava-me, bem recordado da conversa de então:
– Não vou entregar o teste!
– Não sejas parvo, não faças isso!
– Porquê? Vou ter zero na mesma!
Chegou o final de período, última aula, a professora diz as notas. Nove para mim, dez para o S., acompanhado da velha pergunta: – S., você entregou mesmo o teste? É que virei a casa do avesso e ele não aparece!
– Entreguei, stôra, juro que entreguei.
Período seguinte, última aula, melhores notas: eu ia ter quinze, positiva para o S. , não me recordo de quanto. E nós, em torno da secretária da professora, amena cavaqueira, a falar de futuro, das dificuldades em entrar para o Instituto Comercial, da necessidade de conseguirmos média para a dispensa de exame de admissão.
– Como tive nove no primeiro período, e neste vou ter quinze, terei de tirar dezassete no último!
A professora riu do atrevimento. Notas tão altas não eram comuns. Mas eu era convencido, estava apaixonado, por isso adorava a Contabilidade…
O amigo S. desabafava: não sabia se era suficientemente inteligente…
A professora interrompe-o: – S., eu nunca me considerei inteligente, e nunca repeti um ano! Com trabalho, tudo se consegue. E, vendo-nos tão descontraídos, – S., no período passado, você entregou o teste?
O pobre do S., rapaz bom e honesto, desta vez não conseguir continuar a mentir:
– Stôra, para dizer a verdade, não entreguei…
A meiga professora transformou-se em fera furiosa. O que tinha corrido, as voltas que tinha dado, as noites sem dormir a pensar como o teste poderia ter desaparecido! E saiu de rompante. Nesse período, o S., apesar da positiva no teste, teve seis ou sete, já me não recordo
Anos mais tarde, vim a ser professor. Milhares de testes por ano, que em princípio de carreira tinha largas centenas de alunos, muitas centenas de exames. Sempre com a história do teste do S. bem presente, nunca “perdi” nenhum, todos contados e recontados antes da turma sair, apesar dos protestos: já ali não estavam a fazer nada, iam chegar atrasados à aula seguinte, o stôr marcava-lhes falta…
E eu: enquanto não tiver a certeza de que todos entregaram o teste, ninguém sai. Quanto mais protestarem, e mais me interromperem a contagem, mais nos atrasamos. E eu também tenho aula a seguir.
Só um dia, por sorte com turma pequena de Francês, uma meia dúzia de alunas, entreguei os testes – todos riscados. A minha filha mais nova, vendo-os na secretária, pegou na esferográfica vermelha e “corrigiu-os”. Mas não faltava nenhum.
*Creio que então dizíamos "ponto".
Todas as reações:
Carlos Branquinho

quinta-feira, 23 de março de 2023

49 anos

Estas fotos são das poucas do meu casamento, que hoje perfaz quarenta e nove anos. Sem fotógrafo profissional, nem vestido de noiva, nem banquete, nem bolo. Raras prendas. A noiva estava grávida, eu era operário de plásticos em Leiria e vivia na Marinha Grande numa quase clandestinidade, não tinha ainda feito a tropa, não tínhamos uma única peça de mobiliário e dormíamos no chão...




Mudou por completo a minha vida. Fez de mim, que nasci mau, uma pessoa muito melhor -- ainda que nem sempre se note. Muito mais feliz.

quarta-feira, 15 de março de 2023

Nota de leitura de Gilvaz

Tempos atrás, após leitura do PDF de Gilvaz, o Homem das Cicatrizes, a amiga Maria Emília Simões enviou-me a seguinte nota de leitura, que agora  divulgo com a sua autorização.


“Acabei agora mesmo a leitura de Gilvaz. Bela obra, bem escrita e bem construída. Por razões várias, não consegui começar no dia aprazado, mas hoje comecei logo de manhã. Penso que gostará de saber que tive de parar para descansar as costas e me custou interromper a leitura. A narrativa está tão bem estruturada que queremos sempre saber o que vem a seguir, porque o herói nos toca e as suas aventuras estão organizadas com uma lógica perfeita. O retrato do revolucionário puritano, intransigente e fiel aos seus ideais está muito bem dado. Gostava de falar da linguagem que utiliza, mas para isso preciso de mais reflexão. Para já, posso apenas dizer-lhe que serve muito bem a narrativa e transmite sentimentos e sensações subterrâneas de uma forma admirável. Impressionou-me logo no início, quando descreve aquilo que a endemoninhada esconde por ter tido o cuidado de atar o saiote: tomamos consciência de que não deixa de ser uma mulher capaz de despertar desejos, mesmo se nada é dito quando à sua beleza ou graça - obviamente diminuídas pela actuação como possessa. Mas voltarei ao assunto depois de reflectir mais demoradamente sobre a leitura que fiz. Escusado será dizer que gostei muito, e estou muito grata pela disponibilização da obra. Muito obrigada e muitos parabéns. Merece prémio, sem dúvida! 🙂

Maria Emília Simões”

quinta-feira, 9 de março de 2023

O prémio

No meu primeiro ano do Curso Comercial, tive, pela primeira vez, aulas de Inglês. A professora, jovem em início de carreira, chegou cheia de ilusões e de boa vontade. Para nos motivar, haveria, portando-nos bem, aulas em que traria gira-discos e ouviríamos música inglesa e, após cada teste, ofereceria um single ao melhor aluno.

Mas a turma era má. Tinha muitos repetentes, alguns já a avizinhar os vinte anos, filhos de gente importante na cidade. E nós, treze, catorze anos, que queríamos aprender a língua dos Beatles, corresponder à simpatia da professora, assistíamos com desgosto e desaprovação interior ao abandalhar as aulas. Depressa se acabou a música e o gira-discos, de nada adiantou tentar, fora das aulas, apelar ao Augusto , o líder do gangue: Eu quero que a professora boazinha se f.! E ai de ti se dizes alguma coisa, cá fora levas no focinho!

Entregou o primeiro teste, então chamado exercício escrito, elogiou o melhor aluno, quis saber que disco queria, e, na aula seguinte, entregou-lho. Eu terei ficado em terceiro ou quarto lugar. A história repetiu-se no teste seguinte. Ainda não tinha chegado a minha vez.

Incapaz de ter mão na gandulagem, a professora passou a apresentar queixa. Não adiantava mandar o Augusto para a rua, porque ele recusava-se a sair. O director da escola incumbiu o director de curso de resolver o conflito.

Esperava eu que ouvisse cada um de nós em privado, e formasse opinião depois. Nada disso. Sem a presença da professora na sala, adoptou a postura de camarada, de compincha: Ora vamos lá a saber o que se passa, a professora apresentou queixa da turma. 

Toma a palavra o Augusto e culpa a professora: Veja o “senhor doutor” que até teve o descaramento de dizer, a turma pode ser testemunha: Eu tenho a faca e o queijo na mão! E eu não me calei: se a stora tem a faca e o queijo, eu tenho o pires!

O director de curso, professor de Contabilidade do terceiro ano, acena em concordância com a cabeça: É o primeiro ano de ensino dela, eu… e contava histórias da sua experiência pessoal comprovando que, ele sim, é que era bom professor. Ficámos nisto até ao toque de saída, o Augusto e os seus apoiantes a elogiarem o director de curso, ali promovido a “senhor doutor” (contabilista não tinha direito ao título, ao contrário da jovem professora, licenciada em letras, a quem o negavam, referindo-se-lhe como “ela”), Fiquem descansados, vou falar com a minha colega para ver se ela tem mais calma.

Aula seguinte, mesmo comportamento, interrupções frequentes, sempre a despropósito, disparates e piadas secas constantes, enquanto, debalde, a professora, sabendo-se desautorizada pela hierarquia, até porque o Augusto não se coibia de lhe dizer que o senhor doutor directos do curso “nos tinha dado razão, tentava, ao menos, “dar a matéria“.

Terceiro teste, último do primeiro período e, finalmente, a melhor nota é a minha. E já sabia que single iria pedir, tinha previamente conversado com os colegas de quarto:

— Vou pedir o What is reading dos Beatles!

Riram muito. Queres dizer, Dock of a Bay, do Otis Redding!

— Pois, é isso!

Mas não pedi.

— Têm-se portado tão mal que não vai haver mais prémios nem confianças. A partir de agora, nem os dentes me vão voltar a ver!

quarta-feira, 8 de março de 2023

Chatgpt

Certamente já todos ouviram falar no Chatgpt. Eis duas perguntas que lhe fiz, para avaliar a qualidade das respostas. Parece-me que a redacção está ao nível da  de pessoas que escrevem muito bem. Atente-se na estruturação dos textos, na sintaxe, no vocabulário, na pontuação, para além dos conteúdos.

1. E o que se sabe sobre a matéria negra?

A matéria escura, também conhecida como matéria negra, é uma forma de matéria hipotética que não emite, absorve ou reflete luz ou qualquer outra forma de radiação eletromagnética. Acredita-se que a matéria escura constitua cerca de 85% da massa do universo, mas sua natureza exata ainda é desconhecida.

A existência da matéria escura foi proposta pela primeira vez na década de 1930 por Fritz Zwicky, um astrônomo suíço-americano, que observou que a quantidade de matéria visível em galáxias não era suficiente para explicar a velocidade de rotação das estrelas em suas órbitas. Desde então, as observações em várias escalas cósmicas, de galáxias a grupos de galáxias e aglomerados de galáxias, continuaram a sugerir a presença da matéria escura.

Embora a natureza exata da matéria escura ainda seja desconhecida, existem várias teorias sobre o que ela poderia ser. Uma teoria é que a matéria escura é composta de partículas elementares ainda não descobertas, como o WIMP (partícula massiva que interage fracamente). Outras teorias propõem que a matéria escura pode ser formada por objetos maciços, como buracos negros primordiais ou estrelas fracassadas, conhecidas como anãs marrons.

A detecção direta da matéria escura ainda não foi alcançada, mas os cientistas continuam a procurar maneiras de identificar sua presença. Vários experimentos estão em andamento, incluindo detectores subterrâneos e telescópios que procuram evidências de matéria escura na forma de anomalias gravitacionais. O estudo da matéria escura é uma área ativa de pesquisa em astronomia e física de partículas, e a esperança é que, eventualmente, possamos entender melhor a natureza dessa misteriosa substância e sua influência no universo.


2. Quais as principais diferenças entre o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista Português?

O Bloco de Esquerda (BE) e o Partido Comunista Português (PCP) são dois partidos políticos de esquerda em Portugal, com algumas semelhanças ideológicas, mas também diferenças significativas.

Uma das principais diferenças é que o BE se define como um partido de esquerda pluralista e socialista, enquanto o PCP se define como um partido comunista. Enquanto o BE tem uma abordagem mais aberta e inclusiva, o PCP é mais ortodoxo em termos de sua ideologia comunista.

Outra diferença importante é a relação com a União Europeia (UE). O BE é geralmente mais crítico da UE, enquanto o PCP é a favor da permanência de Portugal na UE, mas defende uma posição crítica em relação às políticas neoliberais da UE.

Além disso, o BE tem uma posição mais progressista em relação a questões sociais, como direitos LGBT, feminismo e imigração. O PCP também tem posições progressistas em algumas dessas questões, mas tende a ser mais conservador em questões de costumes e tradições.

Por fim, o PCP tem uma estrutura organizacional mais rígida e hierárquica, com forte centralização do poder no Comité Central. O BE, por outro lado, tem uma estrutura mais flexível e democrática, com decisões tomadas em assembleias e convenções.

É importante lembrar que essas são generalizações e que há membros e simpatizantes do BE e do PCP que não se enquadram necessariamente nessas descrições. Ambos os partidos têm um papel importante na política portuguesa e muitas vezes trabalham juntos em questões em que têm interesses comuns.

terça-feira, 7 de março de 2023

Oradores e escritores

Num conto de Ray Bradbury*, uma personagem, que se depreende ser Hemingway, mas sempre referida como o Velho, interpela o protagonista e narrador:

"-- Você sabe falar -- comentou.

-- Nasceu comigo.

-- Daria um péssimo escritor -- prosseguiu. -- Nunca conheci um escritor que fosse um bom orador. "

Parece afirmação provocatória, que vai de encontro à crença generalizada de que o escritor sabe falar bem. Por isso, os escritores são amiúde convidados a falar em público, em encontros, festivais literários, nas escolas, na rádio, até na televisão.

(São ouvidos, mas à borla; são escutados, mas não lidos; e duvido que depois lhes comprem os livros, mas estas são outras histórias, talvez para outras ocasiões.)

Um bom orador precisa de qualidades específicas, que não são as que fazem o escritor, e vão muito além das capacidades de efabular e de cativar a atenção: aspecto, presença, voz, dicção, forte presença de espírito, argúcia, muita esperteza (a inteligência dos burros, como dizia uma professora minha), vivência em sociedade e domínio dos respectivos maneirismos, capacidade de empatia com o seu público, indo de encontro ao que pressente que a audiência quer ouvir, etc. Como exemplo, os nossos políticos e comentadores, os advogados e juristas que preenchem os espaços televisivos de debate, são, regra geral, bons oradores, fazendo jus ao dito popular “quem o ouve falar não o leva preso”. Que eu saiba, nenhum é escritor.

O escritor pode ser — e muitas vezes é — criatura insignificante e quase desprezível, como o insecto de Kafka, embirrento, maníaco, desinteressante, gago como Somerset Maugham, pode ter pronúncia cerrada, voz feia, ser incapaz de cativar audiências, de empolgar os ouvintes. Para quê, então, querer ouvi-lo, quando a sua linguagem é outra, se o espaço em que, eventualmente, brilha é o do texto escrito, em que põe tudo o que tem, tudo aquilo de que é capaz, tudo aquilo que tem para dizer? 


*Ray Bradbury, "Rumo a Quilimanjaro", in As Vozes de Marte, (I sing the body electric), colecção Argonauta, Ed. Livros do Brasil, Lisboa)

sábado, 25 de fevereiro de 2023

Guerra é paz

A literatura e a vida mantêm entre si uma relação deveras curiosa, sendo impossível determinar qual delas imita a outra. No romance distópico 1984, de Orwell, publicado em 1949, há um Ministério da Verdade antecipando aquele que nestes tempos censórios orienta a comunicação social e as redes sociais onde se fazem as verdades e as opiniões. E, espantosamente premonitório é o lema desse ministério:

GUERRA É PAZ

LIBERDADE É ESCRAVIDÃO

IGNORÂNCIA É FORÇA

Eis a receita para a paz na guerra que assola a Ucrânia: enviar mais armas, cada vez mais mortíferas, isto enquanto houver carne para canhão, pois, ouvi dizer, não tenho confirmação, os ucranianos já estão a recrutar jovens de 16 anos. É uma das coisas que me assusta, com o meu neto mais velho a fazer 17 anos. Na internacionalização do conflito, tão desejada pelas guerreiras do Facebook, sei bem que não serão os filhos delas que enviarão para a frente, tal como o general Isidro, paladino da intervenção europeia, os não irá comandar.

A outra, é que o conflito degenere em guerra nuclear: bem me podem garantir que o Putin não é doido, que o meu receio está noutro lado: na iminência de derrota ucraniana, os americanos recorrerão a ataque nuclear. Afinal, até hoje, só eles usaram bombas atómicas e sobre cidades indefesas no Japão; na guerra da Coreia, à beira da derrota, estiveram novamente prestes a fazê-lo. Tal como, também, na crise dos mísseis de Cuba, em que não toleraram o que agora querem que a Rússia aceite: mísseis a minutos de Moscovo.

Nunca pensei vir a dizê-lo: revejo-me nas declarações do Papa. E não vou entrar em discussões, estou velho para ir para a guerra e para as guerras de palavras.

sábado, 11 de fevereiro de 2023

Eutanásia

O pai entra no quarto quando a filha, com grande esforço, muda a fralda à mãe, acamada há anos, e com demência grave.

— Uma injecção! Era darem-lhe uma injecção…

Num dos seus raros lampejos de consciência, a pobre mulher responde-lhe:

— Leva-a tu!

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Namoro à antiga

 (in Gilvaz, o Homem das Cicatrizes)

“… a Teresinha, a única mulher que tivera nos braços, que tanta força de vontade lhe exigira para não ter também na cama, como ela desejava, como ele sonhava — depois de casados! 

E às voltas no leito, recordava como durante todo um ano, o primeiro ano na Universidade, lhe rondou a porta, a cortejou incansável rua abaixo, rua acima, a soltar baforadas do charuto que apagava logo que contornava a esquina para o poupar, na esperança de que assomasse à janela, a seguia de longe, quando, sempre acompanhada pela mãe e pela criada, passeava pela cidade, sombrinha garrida a resguardá-la do Sol inclemente do nosso Verão. Negros cabelos, pele trigueira a reluzir tentadora como maduro figo lampo, olhar vivo, nada discreto, a provocar remoques constantes da mãe, sorriso constante de quem com tudo se maravilha, que as covinhas do rosto tornavam ainda mais cativante. Tudo nela sugeria, ao olhar romântico de Adolfo, o Portugal de província, são, feliz, satisfeito: como a Joaninha, de Garrett, porém sem olhos verdes nem rouxinóis a segui-la para todo o lado, também ela nem bela nem galante, igualmente pequenina, a despertar o desejo de lhe pôr sobre os ombros braço protector. 

No segundo ano, admitido em sua casa, aceite o namoro pela família, trocavam beijos à socapa, nada castos, antes ardentes, que, pressentia-o, a sua Teresinha era vulcão adormecido, a aguardar por oportunidade para explodir em lava ardente. Resistia. Era menina de família, sua namorada, impunha-se-lhe o dever de a respeitar, de não cair em tentação quando ela o abraçava forte e sentia os mamilos duros atravessarem a roupa que separava a pele de ambos, a coxa carnuda que se introduzia despudoradamente entre as suas pernas como se quisesse confirmar a existência de algo escondido, a boca colada à sua em beijos lascivos, impróprios para donzela casta, como a queria... 

Chegava a assustá-lo o desejo da moça; mas atribuía-o aos calores da virgindade, ao ardor da juventude, à paixão do primeiro namoro, ao sangue do povo, pujante, saudável, que lhe corria vigoroso nas veias e, em cada mês, quando jorrava, a acamava doente, com fortes dores de barriga, vómitos incessantes, empalidecida, aparvalhada até. Nessas alturas, por insistência da enferma, autorizavam-lhe visita no quarto, acompanhado embora pela mãe ou pela criada, jamais a sós: 

— Que tens tu? 

Ela, contorcida com dores, respondia por entre vómitos: — Coisa de mulheres... 

— E o médico, que diz ele? 

Teresinha encolhia os ombros: — Ora, o médico... “

domingo, 5 de fevereiro de 2023

Uma história sem moralidade

Uma anedota da minha mocidade. Qualquer semelhança com a guerra da Ucrânia é mera… eu sei lá se é!

Um meia-leca queixa-se ao amigo grandalhão que um calmeirão lhe bateu.

— O quê? Vamos já resolver isso. Anda daí, vamos procurá-lo!

O queixoso tenta evitar; o amigo não desiste: —  Sempre quero ver se ele se atreve a bater-te à minha frente! Ele que se atreva!

Depressa encontram o agressor.

— Ouça lá, foi você que bateu neste meu amigo?

— Fui, sim senhor. Porquê?

— Ah foi? Então atreva-se a bater-lhe outra vez!

Traz, catrapus! O amigo cai por terra, derrubado por poderoso soco.

— Ah você bateu-lhe? Pá, tu levanta-te! Ora vamos lá a ver se é capaz de lhe bater outra vez!

Ainda não tinha acabado, já o amigo jazia outra vez por terra.

— Eh pá, anda daí, vamos embora, senão o gajo dá cabo de ti!

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Arma uirumque cano

As armas, ainda há tão pouco tempo excomungadas, amaldiçoadas, proscritas, proibidas, confiscadas, apreendidas, culpadas de toda a violência — salvam vidas, dizem-me diariamente nas televisões! São precisas para salvar vidas! Mais: quanto mais mortíferas forem, mais vidas vão salvar!


Mas nem todas as armas salvam vidas: só as que estiverem nas mãos dos nossos; as dos nossos inimigos tiram vidas inocentes, sempre em hediondos crimes de guerra.

O sanguinário hino francês, o mais fofinho português, recuperaram literalmente o significado de antanho:

Aux armes citoyens, formez vos bataillons

Marchons, oui marchons

Qu'un sang impur abreuve nos sillons


Às armas, às armas!

Sobre a terra, sobre o mar

Às armas, às armas!

Pela Pátria lutar

Contra os canhões marchar, marchar

E assim cá vamos, como no hino da bufa, cantando e rindo, levados, levados sim pela voz da tuba mediática, clamor sem fim.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

O último a saber

 Confirma-se que o interessado é o último a saber.

Soube há pouco, a propósito de outro assunto, pelo escritor e amigo João J. A. Madeira, que o meu romance Gilvaz, o homem das cicatrizes foi finalista do Prémio Leya 2021.

Nunca me disseram nada. Mas a informação está no site da Leya.


.

O altar do papa

Em finais dos anos oitenta, dava a informática de massas os seus primeiros passos, uma grande, grande, multinacional contactou uma pequenina empresa, recém-formada, encomendando um software específico para gestão da produção.

Os sócios reuniram, a esfregar as mãos de contentes: uma venda, e logo de muito prestígio! Publicidade que lhes permitiria dar um grande salto no mercado nascente! Mas, conversa de quem ainda não está muito habituado a ganhar dinheiro, demais a mais fácil porque tinham produzido recentemente um programa que respondia exactamente à solicitação:

— Quanto vamos pedir pelo software?

— Ora, o preço a que o temos vendido, dez contos. E é lucro limpo, que já está mais do que pago!

— Estás maluco? Por esse preço, não nos levam a sério!

— Então cem contos.

O terceiro sócio, até então calado, lembrou o óbvio: o gestor de compras da multinacional certamente se abotoava com uma percentagem do valor; a ser esse o caso, e apostava que era, teria que untar as mãos a alguns subordinados para manterem a boca fechada; logo, o preço teria de ser alto para conseguirem a encomenda.

— Mil contos?

— Proponho mais: dez mil contos.

Teve de batalhar para persuadir os sócios. Lá acabaram por ceder e chamaram um funcionário para “customizar” o programa: mudar o logotipo e pouco mais. 

O programa foi imediatamente comprado sem regateios.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Jantar conceitos

São as minhas amigas que escolhem os restaurantes para os nossos jantares. E, por critério, a moda, as opiniões de amigas: —Ainda não foste lá? Tens de experimentar! O conceito é fantástico, cada prato um orgasmo! — ouço-as confidenciar entre si.

Sorrio interiormente. Quem diria que são tão rápidos e tão fáceis nas mulheres de meia-idade? Mas nada digo, afinal, mais do que jantar bem, o que aprecio é a companhia e a amizade, solidificada por um quarto de século, desde que, entusiástica e esforçadamente, fizemos o nosso mestrado em Linguística.

Eis-nos a entrar para uma dessas tascas, agora tão na moda em Lisboa, tão selecta que lugar só por marcação com muita antecedência, tão exigente que só abre às 19H e fecha, imperativamente, às 22. 

Confusão generalizada, barulheira ensurdecedora. Acabamos por nos apertar em mesa acanhada, sentados em mochos de madeira. Não há ementas, e a empregada, ou será patroa, moça brasileira, magra, braços completamente tatuados, dois arganéis nas ventas, diz-nos que o melhor é fotografarmos um quadro negro onde a giz estão indicados os pratos.

Quase não nos conseguimos ouvir. uma das minhas amigas sugere que mandemos vir um prato de cada item e partilhemos, para, assim, podermos provar de tudo. Calo as minhas reticências, afinal já como muito menos ao jantar, se as doses forem tão bem avivadas como suspeito, talvez dê para saborear. Só recuso a sangria, para mim tem de ser vinho tinto, alguma coisa tem de se aproveitar.

Chega o primeiro prato. Polvo à lagareiro. Depois de irmãmente dividido, calha a cada um de nós — uma colher de chá, conforme a foto 1


mostra. Logo que ocorre a quadra de Camões:

“Cinco galinhas recheadas

Prometeu o senhor de Cascais

A meia que mandou

Deixou-me com apetite para as mais.”

Os pratos sucedem-se. Melhores ou piores, sempre a mesma parcimónia (foto 2, choco com tinta, quase impossível de distinguir da batata, tanto à vista como ao paladar; fotos 3 e 4, ainda por partilhar). Com quantidades tão ínfimas, que, mesmo se estivesse cheio, não me sentiria saciado. Por desconfiar do pior, recuso sobremesa. Interrompem-me para que não diga o que parece a mousse de chocolate, embora reconheçam que sabe igual ou pior.



Cabe-me, agora, organizar o próximo jantar, na minha região. Uma responsabilidade, para não desiludir, na certeza de que não vamos comer conceitos.