Enterradas no lodo, bem longe do claro céu, mourejam as enguias, sempre desconfiadas das luzes que fascinam as borboletas ingénuas. Repelentes, de hábitos repugnantes, sobrevivem onde o peixe graúdo, que delas se alimenta, desdenharia viver – mas não se pense que, modestas, discretas, ao menos vivem em paz; não: desde pequeninas que as perseguem impiedosamente. Mei×ão, chamam-lhes, e vendem-nas a preço de oiro, devoram-nas às dezenas em cada dentada... As que logram sobreviver, adoptam rudes modos de vida, ou eu ou eles, e todos fechamos os olhos e só nos indignamos quando as suas histórias sobem fétidas do lodo e borbulham chocantes à superfície dos brandos costumes: “Que horror! Más como as cobras!”
Ei-las, evisceradas, palpitantes, contorcendo-se na frigideira, em fuga do azeite fervente, ei-las que caem no lume vivo, nos seus cérebros atrofiados por trevas milenares uma única vontade, a de sobreviver, uma única ânsia, o Mar dos Sargaços da Redenção deste viver ignóbil...
Como as compreendo, como lhes invejo essa força, essa vontade de lutar desesperadamente, inutilmente, indiferentes à crua realidade, perdida já a esperança do regresso à bonança de um qualquer mar… Ah, antes o inferno da escolha entre frigideira e lume. Antes escamados, esventrados, que resignados ao tango do Orçamento…
Publicado no Delito de Opinião, convite de Pedro Correia. Muito obrigado!
1 comentário:
Tu és terrível, Zé. Um petisco que gosto tanto e que poucas vezes como, conseguiste fazer um drama, como se não bastasse o do tango do orçamento. Deixa-me saborear as ditas, bem fritinhas com uma boa açorda e uma fresca salada enquanto não chegam os prometidos cortes. Bem podias ter escolhido outras bichas (salvo seja!). Tinhas logo de ir às enguias.
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