Número total de visualizações de páginas

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

O velho das couves


Era um velho que amanhava pequena horta espremida entre prédios de andares lá para o lado dos Olivais. Ali passava os dias cavando, plantando, sachando, mondando, regando. A catar lagartas, a caçar lesmas, a espantar pardais. Coisa de matar o tempo, ocupar a reforma, exercitar o corpo, espairecer a cabeça, adubar o caldo. Coisa de ter algo de que se orgulhar, ramalhudas couves de Valhascos, repolhos inchados como abóboras, abóboras tão grandes que poderiam ser do Entroncamento, cenouras farfalhudas, grossas como nabos, nabos brancos de neve, alfaces repolhudas de verde viçoso, tudo tão apetitoso que aos domingos não faltavam passeantes curiosos a deixar comentários elogiosos. 
Numa manhã estival, apenas o Sol nascido, chega pressuroso a regar a novidade pela fresquidão matinal antes que o calor aperte e a estrague, e encontra a horta devastada. Parte roubada, parte vandalizada. Como se ali se travara batalha nocturna. Cenouras arrancadas e caídas por terra como cadáveres, alfaces pisoteadas como se a tropa lhes passara por cima, melões esventrados como prisioneiros massacrados, o sumo vermelho de uma melancia derramado como sangue... E o velho sentou-se desanimado no banco onde ao entardecer costumava, qual deus bíblico, gozar o fresco da brisa da tarde enquanto admirava a sua criação -- e chorou. 
Dor e raiva. Mais do que o prejuízo do roubo, magoavam-no os estragos sem outra finalidade que o fazer mal por mal fazer.
-- Malandragem! 
E passava o olhar magoado pela terra juncada de hortaliças em meio crescimento.
-- Ainda se roubassem para comer! Ah, se eu os apanho..., resmungava, sabendo que o melhor seria nunca os apanhar -- deixá-lo-iam em pior estado do que a horta.

Voltou a semear, voltou a plantar. E quando a verdura já sorria a prometer encher-lhe em breve a panela, noutra noite arrasaram tudo.
Desconsolado, nem os amaldiçoou. Abalou pesaroso, macambúzio, a pensar no que fazer da sua vida, assim privada de sentido. 
Na manhã seguinte, os vizinhos encontraram-no enforcado em balaústre das escadas do prédio. 

2 comentários:

Ana disse...

Uma pequena correcção: melões esventradOs.

JCC disse...

Já corrigi. Muito obrigado.