O lateiro* (Da série, Na tropa)
Sofria então do apetite voraz dos vinte anos, agravado por exercícios físicos intensos e castigos frequentes. Com motivo, sem motivo, ou por dá cá aquela palha,
-- Tá a encher! Faça (a fórmula de tratamento era sempre respeitosa) aí trinta flexões e dez cangurus!
ou porque todo o pelotão era castigado,
-- Mais dez!
ou por recusar parvoíces,
-- Vá dar vinte àquela árvore!
-- Então faz já vinte flexões aí. Protesto: corre água por baixo. -- Assim, são cinquenta. Se as fizer bem feitas não se molha!
Mas os braços exaustos mal conseguiam levantar a barriga do chão.
-- Mais vinte, que essas foram aldrabadas!
E nos crosses que antecediam a saída de fim‑de‑semana, que fazíamos com as botas da tropa, a farda de trabalho, os arreios, os carregadores e o cantil, ambos vazios, muitas vezes carreguei, para além da minha G3, a de camaradas menos robustos fisicamente: enquanto não estivesse todo o pelotão formado e impecavelmente arranjado na parada, não havia saídas para ninguém. Ora não podia perder a única carreira do sábado à tarde para a minha terra...
Pois a fome era constante, a fraqueza muita, a comida péssima.
-- Como é que está o prato, perguntavam-me os camaradas, antes de se atreverem a provar. Se dizia "Está bom", traduziam por "Pode-se comer". Caso contrário, ficavam-se pela sopa e pelo "casqueiro", o saboroso pão estaladiço, cozido no quartel. E seguiam para a camarata, a completar a magra refeição com pitéus -- alheiras, chouriços, queijo, bolos, tudo trazido de casa em cada fim-de-semana, e, quando havia saídas à noite, enchiam-se de tostas, sandes e galões nos cafés da cidade. Não eu, que não podia, nem queria: obrigam-me a estar aqui, têm de me alimentar.
Logo ao pequeno almoço, enfiava dentro de carcaça um pacote inteiro de 250 gramas de manteiga genuína, único luxo alimentar da minha recruta, e empurrava aquilo com a mixórdia de café com leite em pó, a que, dizia-se, adicionavam químicos para tirar a tesão. Ao almoço e ao jantar, virava a travessa, se os outros, apetite perdido à vista dos manjares servidos, apenas sujavam os pratos de segundo para não serem acusados de levantamento de rancho e se retiravam enojados a comer dos armários.
Pois num belo dia de muita chuva, em que rastejávamos pela lama, rolávamos por ribanceiras, treinávamos a "queda na máscara" sobre urzes e espinheiros, o aspirante confidenciou: -- Hoje há rancho melhorado! E não revelava que prato seria esse a substituir o maldito espaguete gorduroso, que fiquei a odiar para o resto da vida, ou o arroz espapaçado, adubado talvez com um ou dois estilhaços de carne horrível.
Aguardávamos impacientes na formatura por ordem de entrada no refeitório. Os longos minutos pareciam horas, depois passaram a horas. Mais de duas, de pé, na descansada posição de Descansar. Desesperava com fome, receava desmaiar de fraqueza, como vira já suceder a outros.
Eis que surge o comandante de companhia. com as duas notícias da praxe, uma boa: teríamos frango assado; outra má: tinha havido uma avaria na cozinha! E pedia voluntários para ajudar, não é a vossa função, senhores instruendos, mas para almoçarem mais depressa...
Sabia, tal como todos os outros, que na tropa nunca se deve ser voluntário para nada. Mas a fome era negra e avancei, na esperança de, uma vez dentro da cozinha, deitar mão a perna de frango, a asa que fosse...
E pela primeira vez entrei na cozinha de um quartel. Cheiro nauseabundo. Porcarias por todo o lado. Chão imundo, gorduroso. E vi, com estes dois que a terra há-de comer, tarde, espero, um soldado a limpá-lo com esfregona, a mesma que de seguida introduziu numa das enormes panelas antes de outro para lá despejar o arroz que iria acompanhar o frango assado.
Nunca mais entrei na cozinha de um quartel -- mas aquele cheiro nauseante, inconfundível,permanece entranhado nas minhas memórias quarenta anos depois.
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