Número total de visualizações de páginas

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Ferido d'asa (2)

II
Acordou ao anoitecer. Ali não poderia ficar, qualquer raposa ou doninha dele faria o jantar. Arrastou-se por entre dores terríveis, quase a desistir, até que, às cegas, logrou alcançar a saída. Fora, a lua cheia iluminava o campo, onde ir, onde dormir? O bando andaria longe, as perdizes sobreviventes dispersas e aterrorizadas, incapazes de lhe valer mesmo se as encontrasse – e nem forças para o chamamento havia. Ah, se fosse pombo empoleirar-se-ia em alto ramo – e como, se tinha a asa derribada? Também escondido em moita seria facilmente encontrado pelo faro dos inimigos e, incapaz de fugir, terminaria os seus dias entre dentes esfomeados, de nada lhe valendo ter escapado a cães e caçadores.
De um dos lados, o silvado acabava em barreira. Subiu-a penosamente e num esvoaçar desesperado, quase de uma asa só, saltou largo, longe, aterrando bem em cima das silvas – que trespassaram as penas e o feriram dolorosamente. A salvo dos inimigos de quatro pernas, não o estava porém dos voadores, e enfiou-se o mais que pôde dentro do silvado.
Não dormiu. As dores martirizavam-no, Cristo pregado numa cruz de silvas, como ele inocente coroado de espinhos, como ele vítima da ferocidade dos homens. Ali se deixou ficar, imóvel para que os picos o não martirizassem mais, bebendo as gotas de orvalho, debicando – alimento estranho para papo habituado a grãos – as doces amoras, coisa de se manter, de sobreviver, náufrago em mar de silvas ondulando ao vento logo acima da sua crista.
A primeira visita que teve foi do peneireiro. Bicho peneirento. Avistara-o lá das alturas em que caça, olhos penetrantes de falcão, pousou, não logrou alcançar Pedro, bem defendido pela agudeza dos picos. Ficou por ali a dar-lhe conversa, tal e qual como os políticos e os economistas fazem com os humanos: -- Compadre, vais morrer de qualquer maneira. Sabes bem que já não te safas. Posso livrar-te do sofrimento. Uma bicada minha e acaba-se tudo. Que me dizes?
-- Vai-te...
-- Malcriadão. Mas enfim, perdoo-te a ofensa, estás nas últimas, deliras já. Corresses tu pelos campos com o teu bando e queria ver-te a falar-me assim. Enfim – e levantou aos céus o olhar cínico --,  perdoai, Senhor, as nossas ofensas como nós perdoamos a quem nos tem ofendido. É o teu destino. Vais morrer. Precisas de me matar também?
Pedro não respondeu. Precisava de poupar saliva, o Sol atravessava a vegetação sem se picar e queimava o perdigão como se fora Verão.
-- Vá, fala, diz alguma coisa. Sabes que te admiro, o maior perdigão d'Aqui e d'Alèm. O mais vivaço. O maior cobridor. Nenhum outro tinha bando com tanta fêmea. Sempre cumpridor das obrigações para com cada uma delas, bem o vejo lá de cima. Queres agora acabar vilmente, a apodrecer neste silvado, devorado pelas formigas, sem proveito para ninguém, nomeadamente para mim, que só te não comi antes porque não quis?
-- Vai-te... , tornou a responder o malcriado. Nunca me caçaste porque sou mais esperto e mais ligeiro do que tu. Não fora a arma de fogo do Homem e nunca chegarias à fala comigo. O que faço com a minha carcaça só a mim diz respeito. Fica para aí o dia inteiro a palrar como gralha, que é bom morrer com companhia. Pode ser que os caçadores voltem por mim…
O peneireiro agitou-se nervoso, olhou em volta receoso. Ao longe, latiam cães. De caça? De guarda? O ladrar é o mesmo… E prudentemente o falcão bateu as asas, elevou-se nos ares fora do alcance de espingardas, nas alturas de onde podia vigiar Pedro, se ousasse sair a procurar refúgio no arvoredo.
À noite veio a raposa, veio a gineta, veio a doninha, todas com muita conversa, a propor-lhe expedita e grátis eutanásia. Veio o furão, animal medonho, vampiro dos coelhos, a cobiçar-lhe o sangue – e pouco havia. Mas nenhum animal se conseguiu aproximar.
Passaram outros dias. Precisava de sair, comidas as amoras da redondeza. E Pedro, numa madrugada, quando os inimigos nocturnos se tinham já resguardado e antes que os dos ares se levantassem, ora empoleirando-se, ora esvoaçando, alcançou a barreira. Furtivamente, embrenhou-se por entre o arvoredo. Com tanto azar que, descobriu-o depressa, era outra vez dia de caça.
Tiros e mais tiros. Gritos, latidos. Outra vez tiros. Vida infernal, a dos animais do campo, cara a liberdade, custosa a sobrevivência, por todo o lado tantos inimigos, os piores são os caçadores e os seus cães, piores porque ferem longe e nem sequer matam por fome…
Do alto do outeiro, o perdigão estendeu a vista e assistiu horrorizado às caçadas. Pareceu-lhe que dois lugares escapavam à sanha matadora: junto das casas e perto do cemitério, onde uma placa colocada pelos homens tinha sinais esquisitos que Pedro bem via mas não compreendia: SANTUÁRIO. Foi para lá que se dirigiu.

Sem comentários: