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quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Ferido d'asa (3/4)

III
Por qualquer razão incompreensível, como se receio houvessem dos defuntos ali sepultados, os caçadores passavam ao lado do Cemitério, chamavam imperiosos os cães. E Pedro aprendeu que, desde que não passasse para lá das placas com o estranho dizer, não corria o perigo de ser novamente caçado.
Recuperou dos ferimentos, mas não voltou a voar. Pobre perdigão que perdeu a pena, condenado a viver deficiente, bicho da terra tão pequeno!. Mas Pedro, se pena de si tinha, não a mostrava. E quando ao longe, numa manhã espevitada pelo Sol, se ouviu o Cuco a anunciar a chegada da Primavera, Pedro sentiu nas veias o sangue a remoçar e atreveu-se a soltar o Chamamento do Bando.
Antes o não fizera. O bando aterrou perto, mas para assistir à tareia que o novo Perdigão em funções deu no pobre Pedro. Ensanguentado, acachapado em moita como coelho apavorado, viu – teve de ver – o Arnaldo Perdigão arrastar a asa às perdizes cujas suas antes haviam sido, a montá-las galifão, e elas, submissas, a baixarem-se  e a levantarem felizes a cauda para que as cobrisse. Efémero é o amor, quem não aparece esquece, que esperavas, Pedro, desaparecido durante todo um Inverno, as tuas penas a salvo enquanto as do bando se iam, uma após outra, e as aves, depenadas e amanhadas, acabavam estufadas e servidas à mesa?  Esqueceste, acaso, que é obrigação do Perdigão oferecer-se em sacrifício para salvação do bando? E apareces após este tempo todo, a chamar as fêmeas como se as mereceras, tu que não soubeste morrer quando devias, tu pobre aleijado, a querer cobrir perdiz como se foras jovem brigão com tal direito, são e escorreito?
Escarninhas afastam-se as perdizes, à cabeça o imponente perdigão, inchado como galo de engorda. 
Pedro, eremita a viver nas redondezas solitárias do cemitério, refugia-se no estudo, procura a sabedoria, descobre as virtudes da religião, como acontece amiúde com os animais e homens a quem fêmea falta: 
-- Ah, este mundo é ilusão, tudo passa, tudo muda, tudo vai sempre de mal a pior, para quê a agitação, a correria, a busca da riqueza e da fama, se inevitavelmente acabamos mortos por tiro traiçoeiro ou de maleita na cama? Todo o esforço é vão, toda a glória inútil, endireitai os caminhos do Senhor para que nos proteja de fome e de caçador, sede humildes, reparti o que tendes, quanto mais derdes mais havereis, seja neste mundo, seja depois, quando voardes pelo Céu Eterno, livres para sempre das peias carnais!
A bicharada das redondezas escutava a pregação, mas mais ouvia do que a seguia: nos bandos de perdizes, o perdigão não as repartia, antes defendia bravamente contra rivais, fossem eles iguais com bando próprio, fossem deficientes ingentes que recorriam à pregação com vista à sedução e posterior cobrição…
Por isso, Pedro, mal avistava perdigão pimpão a aproximar-se, atraído pela prédica, prestes se protegia em silvado evitando briga de que sairia sovado perdedor; e logo que o concorrente se afastava, retomava o sermão, sacerdote pedófilo, cuco esperançoso de atrair franganita ingénua e fazer filhos em bando alheio. Não sei se alguma vez o terá conseguido: os machos, conhecida a sua fama de santo de pau carunchoso, impediam à bicada as fêmeas de se aproximarem do cemitério; e elas próprias troçavam cruelmente do pobre perdigão, aleijado desasado e velho -- e o pobre Pedro, se porventura acabou converso pela própria pregagem, nem por isso deixou de cobiçar a perdiz alheia.

2 comentários:

Anónimo disse...

"Manhã solarenga", sr. professor de Português? Este erro é de cabo de esquadra.

"Manhã soalheira"= "Manhã com sol"
"Casa solarenga" = "Casa com carcterísticas de solar"


Cumps.

Jorge Almeida-Bessa

JCC disse...

Se o grande Homero por vezes dormitava, eu sou um dorminhoco incorrigível. Sempre com o dicionário à mão, o que nem sempre evita erros de cabo de esquadra. Que me mostram que, afinal, sou lido e por leitores bem atentos.
Muito obrigado pela correcção.