Que é a vida do nosso perdigão, rei exilado preso ao terreiro por tiro traiçoeiro? Uma vaga memória daqueles tempos em que com golpe de asa vigoroso transpunha os vales e mais depressa chegava ao próximo outeiro do que o jipe do caçador lampeiro? Saudades do bando que governava e protegia, dos perdigotos que nasciam às dúzias em cada ninhada e lestos corriam logo à desfilada? Memórias desse tempo que foi e já não é, receio do que o Outono trará quando soarem os primeiros tiros de Setembro – apenas para rolas e tordos, mas Pedro não lê editais e esconder-se-á apavorado como os demais animais.
Eis que chega o dia fatídico da guerra impiedosa aos bichos de pena, fugir ou ficar, correr ou voar? De todo o lado assobia chumbo, só Pedro resguardado no SANTUÁRIO está a salvo – se caçador incumpridor o não matar:
-- Não vi as placas, senhor guarda! Juro pela saúde da minha mãezinha!
-- E também não viu que era perdiz, não rola ou codorniz?
-- Pois não, senhor guarda! Se não voava, apenas corria como rato pelo mato!
Terá o caçador punição, só a Pedro pendurado no cinturão de nada adiantará ser confiscado: depois de morto, pouco lhe importará ser ou não cozinhado. Por isso, sempre desconfiado dos homens e das suas leis, esconde-se novamente em silvado e reza, reza mentalmente para que o domingo acabe depressa e leve consigo Outono e Inverno, ambos de penúria desagradável e risco de vida incalculável.
O perigo veio dos outros bichos: -- Porque não morre Padre Pedro, velho, inválido e resmungão, em vez dos jovens perdigões, das moças perdizes? Porque não segue a própria pregação, despachando-se a entregar a alma ao Criador e a carne ao caçador? Pacto com o Maligno haverá.
E na manhã seguinte, logo que os animais dispersos pelo tiroteio da véspera reagruparam, chegam-se a pedir contas ao profeta. Ignoro se combinaram o protesto pelas redes sociais dos animais, essas que cruzam fios de alta tensão com restolhos, vinhas e olivais, se espontaneamente se congregaram justiceiros: ali estava toda a bichada de Aqui e d’Além, bandos de perdizes em que já não reconhecia ninguém, rolas tolas, pombos que voam aos tombos, cucos malucos, laparotos marotos, lebréus algo incréus, um texugo sanhudo, o javali que corre por aqui e por ali, melros e melras de sangue nas guelras – enfim, tudo o que era bicho de pêlo, de pena. Queriam explicações: porque o não caçavam a ele, Pedro, o Desasado, por demais fácil de apanhar impedido de voar, e a eles perseguiam e matavam em vinhas e olivais?
Pedro, cercado, sofria insultos, bicadas e patadas, exaltam-se ainda mais os ânimos -- que se faça ali e já justiça popular, depois o tribunal divino apurará se agiram bem ou mal. Que se entregue ao Criador este pregador, que se sacrifique para que não mais os persiga caçador.
Chega-se uma das raposas desconfiadas, que de tanto perseguidas, caçadas, envenenadas, quase foram exterminadas:
--- Amigos, tal coisa não queirais vós fazer. Deixai-me, que eu prestes sobre ele porei remédio.
E ia abocar o pobre Pedro, quando este, num arrojo de génio deu em gritar: --- Milagre! Milagre! Olhai e vede! Uma linda senhora sobre aquela azinheira, o Sol que anda à roda da terra inteira!
Milagres é o que todos queremos, por eles ansiamos, pena rarearem, culpa da nossa fraca fé – e os bichos alevantaram os olhos ao céu, e ofuscados pelo Sol já lhes parecia que sim, rodava como as cabeças, agora voltadas pela azinheira, e de facto clarão e luzes que enchiam os olhos encandeados pousaram sobre a copa. Logo a tola da rola deu gritar: -- Milagre é este, espantosa coisa de ver, senhora tão linda pousada em azinheira -- tão leve que nem os ramos curvam sob o seu peso! E bico por terra, sem mais ousar fitar a aparição, rogava: -- Senhora das Aves e dos Céus, intercedei por nós, pecadores! Acabai com os caçadores!
E o Mocho dorminhoco, despertado pela revolução, a mostrar erudição:
-- Sinal divino é este sem dúvida, perdoai a Pedro Perdigão, que mal não nos traz e tem do divino a protecção.
Meneia três vezes a veneranda cabeça e diz:
-- Vejam lá agora os sábios na escritura que espantosas coisas são estas da natura!
Que é feito de Pedro Perdigão, perguntar-me-eis? Pois ia jurar que ainda ontem o ouvi cantar…
Eis que chega o dia fatídico da guerra impiedosa aos bichos de pena, fugir ou ficar, correr ou voar? De todo o lado assobia chumbo, só Pedro resguardado no SANTUÁRIO está a salvo – se caçador incumpridor o não matar:
-- Não vi as placas, senhor guarda! Juro pela saúde da minha mãezinha!
-- E também não viu que era perdiz, não rola ou codorniz?
-- Pois não, senhor guarda! Se não voava, apenas corria como rato pelo mato!
Terá o caçador punição, só a Pedro pendurado no cinturão de nada adiantará ser confiscado: depois de morto, pouco lhe importará ser ou não cozinhado. Por isso, sempre desconfiado dos homens e das suas leis, esconde-se novamente em silvado e reza, reza mentalmente para que o domingo acabe depressa e leve consigo Outono e Inverno, ambos de penúria desagradável e risco de vida incalculável.
O perigo veio dos outros bichos: -- Porque não morre Padre Pedro, velho, inválido e resmungão, em vez dos jovens perdigões, das moças perdizes? Porque não segue a própria pregação, despachando-se a entregar a alma ao Criador e a carne ao caçador? Pacto com o Maligno haverá.
E na manhã seguinte, logo que os animais dispersos pelo tiroteio da véspera reagruparam, chegam-se a pedir contas ao profeta. Ignoro se combinaram o protesto pelas redes sociais dos animais, essas que cruzam fios de alta tensão com restolhos, vinhas e olivais, se espontaneamente se congregaram justiceiros: ali estava toda a bichada de Aqui e d’Além, bandos de perdizes em que já não reconhecia ninguém, rolas tolas, pombos que voam aos tombos, cucos malucos, laparotos marotos, lebréus algo incréus, um texugo sanhudo, o javali que corre por aqui e por ali, melros e melras de sangue nas guelras – enfim, tudo o que era bicho de pêlo, de pena. Queriam explicações: porque o não caçavam a ele, Pedro, o Desasado, por demais fácil de apanhar impedido de voar, e a eles perseguiam e matavam em vinhas e olivais?
Pedro, cercado, sofria insultos, bicadas e patadas, exaltam-se ainda mais os ânimos -- que se faça ali e já justiça popular, depois o tribunal divino apurará se agiram bem ou mal. Que se entregue ao Criador este pregador, que se sacrifique para que não mais os persiga caçador.
Chega-se uma das raposas desconfiadas, que de tanto perseguidas, caçadas, envenenadas, quase foram exterminadas:
--- Amigos, tal coisa não queirais vós fazer. Deixai-me, que eu prestes sobre ele porei remédio.
E ia abocar o pobre Pedro, quando este, num arrojo de génio deu em gritar: --- Milagre! Milagre! Olhai e vede! Uma linda senhora sobre aquela azinheira, o Sol que anda à roda da terra inteira!
Milagres é o que todos queremos, por eles ansiamos, pena rarearem, culpa da nossa fraca fé – e os bichos alevantaram os olhos ao céu, e ofuscados pelo Sol já lhes parecia que sim, rodava como as cabeças, agora voltadas pela azinheira, e de facto clarão e luzes que enchiam os olhos encandeados pousaram sobre a copa. Logo a tola da rola deu gritar: -- Milagre é este, espantosa coisa de ver, senhora tão linda pousada em azinheira -- tão leve que nem os ramos curvam sob o seu peso! E bico por terra, sem mais ousar fitar a aparição, rogava: -- Senhora das Aves e dos Céus, intercedei por nós, pecadores! Acabai com os caçadores!
E o Mocho dorminhoco, despertado pela revolução, a mostrar erudição:
-- Sinal divino é este sem dúvida, perdoai a Pedro Perdigão, que mal não nos traz e tem do divino a protecção.
Meneia três vezes a veneranda cabeça e diz:
-- Vejam lá agora os sábios na escritura que espantosas coisas são estas da natura!
Que é feito de Pedro Perdigão, perguntar-me-eis? Pois ia jurar que ainda ontem o ouvi cantar…
1 comentário:
Este conto ficava muito bem com umas ilustrações... tens de arranjar um ilustrador! :)
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