Transformámos em veleiro o J2HV, essa humilde chata por nós construída para a pesca na albufeira de Castelo do Bode . Com vento a favor, o barco corria sobre a água e nós, entusiasmados, víamos-nos já a explorar todos os recônditos até então inacessíveis na vasta albufeira, e neles a pescar os maiores achigãs... Mas não navegava com vento contrário -- não bolinava. Fomos aos livros, pedimos conselho aos entendidos: o barco precisava de um bom patilhão. E lá voltámos nós às carpintarias, em busca de um pedaço de contraplacado marítimo. Numa delas, quando o empregado procurava por entre bocados de dimensões variadas um que se aproximasse do pretendido, chega o dono, ricaço de família rica do Entroncamento. Ignora-nos, pergunta rispidamente ao empregado o que faz ali, e inteirado ordena-lhe: "Isso não compensa. Volta para o teu serviço." Saímos indignados com tamanha arrogância, e terá sido por praga nossa que, pouco depois, para nossa satisfação, ele faliu...
Com o patilhão, o barco bolinava. Experimentámo-lo num fim-de-semana, sempre à vista do parque de campismo, onde acampávamos em modestas canadianas por entre as tendas-mansão e as caravanas dos proprietários de potentes lanchas a motor, os quais olhavam por cima da burra para nós, pobretanas penetras a destoar naquele novo-riquíssimo de aparências mantidas, ao que constava, à força de calotes.
Pouco depois, sem suficiente preparação, o Henrique e eu fomos para subir o rio à vela. Chegados a Castelo do Bode, o Henrique mudou-nos os planos. Acamparíamos no parque de campismo. Mais seguro. Mais confortável. Ainda insisti em pôr a bordo uma tenda e umas latas de atum, para o que desse e viesse. Recusou, com fé inabalável no veleiro: dava perfeitamente para ir e vir no mesmo dia.
Deu para ir. Com vento de feição, afastámo-nos muito e muito rapidamente. Eufóricos. O pior foi para regressar. O mesmo vento que nos levara velozmente para montante, para lá nos empurrava por mais que tentássemos bolinar. O barco era curto, o vento contrário forte, e após horas de tentativas fracassadas, acabávamos sempre no mesmo ponto. A noite aproximava-se fria, o estômago exigia comida de mais sustento que a bolacha Maria, aliás já devorada - foi preciso voltar aos remos. Mas o meu companheiro dizia não poder remar por via dos estilhaços de granada no pulso e no joelho, recordações que trouxe de Angola juntamente com os intestino furados por bala de Kalash, pelo que, qual mestre da embarcação, fumava sentado à proa, cigarros atrás de cigarros, enquanto eu, não fumador, me esforçava exausto contra o vento que, soprando contra a vela amainada, nos dificultava a progressão. Anoiteceu. Ao longe, muito ao longe, avistámos as luzes do parque de campismo. E o meu companheiro, sempre agarrado ao cigarro: "Vá, já está quase". Eu, mais morto que vivo, as mãos ensanguentadas das bolhas rebentadas, maldizia aventura e companhia e, endireitando as costas sofridas, contei-lhe a história dos dois caminheiros surpreendidos por ataque de urso: um trepou para cima de uma árvore, abandonando o companheiro à sua sorte, o qual, não podendo fugir e não havendo quem lhe acudisse, fez-se de morto. O urso farejou-o e foi-se embora. E o amigo, descendo da árvore, pergunta-lhe trocista: "Que segredo te dizia a horrenda besta ao ouvido?"
"Que nunca mais me meta em outra jornada na companhia de semelhante camarada".
FOTOS: (1) o Henrique e o Jorge no J2HV antes da transformação da chata em veleiro e (2) nós dois a aprender a velejar.
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