Muitas vezes, em serões de Inverno à lareira, a minha avó trauteava:
A Maria da Fonte
Não é mulher como as mais
Usa facas e pistolas
Para matar os Cabrais
E, entusiasmada, contava façanhas dessa mulher lendária, à mistura com histórias inspiradas na sua vivência dos tempos revolucionários da Primeira República. Foram, seguramente, essas memórias que me levaram a escrever o romance Gilvaz, o homem das cicatrizes, que tem por protagonista Adolfo, um jovem jornalista revolucionário enviado ao Minho a cobrir a revolta da Maria da Fonte, em 1846.
Com uma vida multifacetada — estudante, jornalista, militar, mutilado de guerra, mendigo, professor, outra vez mendigo em final de vida — Adolfo move-se no Portugal oitocentista, conduz-nos pelas aldeias insurrectas do Norte, sofre as vicissitudes da Guerra da Patuleia, em que acaba ferido, coxo e desfeado por cicatriz no rosto, o feio gilvaz que lhe dá a alcunha, conhece a solidão de mestre-escola em lugarejos remotos da Beiras, conspira nos cafés e botequins de Lisboa, Coimbra, Porto, não hesita em participar, já octogenário, no regicídio de 1908, colaborando com o jovem Manuel Buíça, convencido por desilusões e fracassos de que só um Terror à la Robespierre pode limpar a nação dos interesses estabelecidos e dos laços familiares que fazem com que as mesmas famílias se perpetuem no poder desde o Liberalismo.
A escrita deste romance, que se prolongou por três anos de trabalho intenso e árduo, apoia-se em sólida investigação e foi, como disse, motivada pelo fascínio pessoal pelo mito da Maria da Fonte, a heroína da Póvoa de Lanhoso; pretendeu dar resposta ficcional a questão que me intriga: por que falharam todas as revoluções em Portugal nos dois últimos séculos? Mas, se o pano de fundo social e histórico é correcto e reproduz acontecimentos marcantes, já a trama narrativa me levou por caminhos inesperados, pois a história tomou o freio nos dentes e levou a escrita por caminhos pouco ortodoxos…
É chegada a hora de este romance deixar a gaveta onde descansa desde que o terminei, em 2015, tendo apenas saído uma vez por outra para participar em raros concursos — foi distinguido com Menção Honrosa no Prémio Ferreira de Castro 2018, promovido pela autarquia de Sintra.