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quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

A emboscada

Diariamente, uma matilha de rafeiros, arraçados de fox-terrier, esperava-me emboscada, quando, aí pelos meus treze, catorze anos, voltava da escola, rumo à casa onde estava hospedado, numa das pontas de Leiria: num ladrar infernal, cercavam-me, raivosos, a tentarem rasgar-me as calças, dilacerar-me as pernas. E eu, apavorado, costas contra as paredes das casas, tentava mantê-los à distância, repelindo-os com os pés, com os livros como se paus fossem, enquanto, como o caranguejo, andava de lado, até me afastar o suficiente do território a que chamavam seu e me deixarem ir à minha vida, sempre ladrando ameaçadores.

Se eu não andasse sempre na Lua, em permanente devaneio, lembrar-me-ia de ir prevenido com bolsada de pedras, ou, melhor, de ir dar uma grande volta, evitando passar pela azenha de onde eles saiam. Mas apanhavam-me sempre desprevenido. Creio que sabiam o meu horário.

Não foi premeditado, mas naquela tarde, cercado, quase mordido pela rafeiragem, fingi meter a mão no bolso como se lá tivesse pedra; recuaram, para voltarem ainda mais agressivos. E eu encontrei na algibeira uma bomba de Carnaval, de um modelo então novo, que acendia sem fósforo, bastava riscar na lixa da caixa de fósforos.

Foi o que fiz. Atirei-lhes a bombinha. Recuaram novamente, para , cada qual de seu lado, me voltarem a cercar e a atacar. O silvo da bicha acesa, como cobra furiosa, atraiu-os. Lançaram-se sobre a bomba, que saltitava na estrada, fumegando, Béu, béu, béu, a tentarem abocá-la.

Pum!

Ah cães dum raio! Foi ver qual fugia mais depressa para o moinho!

E daí para a frente, se me espreitavam era para prontamente desaparecerem, refugiando-se apavorados em casa.


sábado, 12 de dezembro de 2020

O empréstimo à TAP

 Ouço na televisão que a TAP vai começar a devolver dinheiro ao Estado em 2025.

Esta gente nunca leu Gil Vicente?
"e é mui mau de volver depois que o apanhais."
Ficai sabendo, caros contribuintes: afora uma ou outra devolução simbólica, para efeitos de propaganda, e isto se este governo o for em 2025, podeis dizer adeus aos milhares de milhões que o governo puser na TAP, tal como aos que pôs e põe nos bancos. Ah, e é tudo o mesmo saco. Se não põe dinheiro na TAP, terá de o pôr nos bancos, seus credores. E também sai sempre do mesmo saco, que, por acaso, não é do governo, mas dos contribuintes -- daqueles que não têm como escapar ao fisco. Porque os outros, quando atrapalhados, serão sempre salvos.
Tenho dito.

A andorinha desasada - final

 Enganei-me na divisão e numeração dos excertos. Segue o final da história.

 Impossível descrever a festa que aqueles pais fizeram ao reverem vivo e de saúde o filhote que julgavam há muito morto, a alegria da nossa andorinha, há tanto tempo solitária! Voaram juntos em acrobacias aéreas como só as andorinhas sabem fazer, quando acalmaram pousaram nos fios próximos do velho ninho a contar as novidades de África e dos irmãos, a ouvirem Piupiu contar como sobreviveu graças ao pinheiro manso.

Em baixo, Tareco lambe as patas, penteia os bigodes, sonha com filhotes de andorinha a caírem desastradamente do ninho que agora arranjam para outra postura de ovos, de onde nascerão andorinhas bebés, cegas e nuas, que Piupiu ajudará a criar e mais tarde acompanhará até África quando chegar a altura da migração.”

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

A andorinha desasada (3/6)

 Durante muito tempo, Piupiu continuou imóvel, mais morto do que vivo. Só reanimou quando mãe e pai o vieram visitar, com bichinhos no bico para o seu almoço.


Passaram as semanas. Nos fios da electricidade, as andorinhas conversam agitadas; mais uns dias, e terão de partir. E Piupiu?

Continua no pinheiro manso, vigiado pelo Tareco. A asa não sarou ainda. Qualquer tentativa de a mexer provoca-lhe dores insuportáveis. Os pais despedem-se, inconsoláveis: 

— Adeus, rico filho, que não te tornamos a ver! 

Choram eles, chora Piupiu, já que mais nada podem fazer. É assim a natureza, é este o destino das andorinhas, voar para Sul quando chega o Outono, morrer de fome e de frio se o não puderem fazer.

Nos fios em frente da casa, já nenhuma andorinha se empoleira. A solidão e a fome atormentam Piupiu, que nada mais faz do que chorar. E pensa, cada vez mais, deixar-se cair da árvore para o que gato ponha fim aos seu tormento. Só ainda o não fez por ver como Tareco tortura as presas, que morrem em grande e demorado sofrimento.

E o malandrete, todos o dias lhe recorda, enquanto solta e volta a caçar ratinho que julgava, talvez, ter conseguido escapar ao gato feroz: 

— Estou de olho em ti. Também cá hás-de vir parar!

— Pronto, está bem! É agora! 

E ia-se deixar cair, quando ouviu voz na sua cabeça: 

— Que vais fazer, meu tonto?

Olhou em volta. Ninguém. Nem sequer um dos pardais do telhado que às vezes se empoleiravam noutros ramos da árvore e nada lhe diziam. Que os pardais são muito sociáveis, muito conversadores, mas apenas entre eles. Nem os bons dias lhe davam, quanto mais perguntar-lhe pela saúde, pela asa doente!

De onde viria a voz? Respondeu-lhe com pensamento: 

— Nada me resta, os meus pais e irmãos partiram na migração com as outras andorinhas, eu não posso voar, morro de fome, quero acabar com este sofrimento inútil. 

— Não tens esse direito. Não escolhemos viver, não escolhemos morrer. Morres quando chegar a tua hora, mais nada.

— E como vou, entretanto, comer, sobreviver ao Inverno que, disseram-me as outras andorinhas, se aproxima?

A voz que ouvia na sua cabeça respondeu-lhe sem palavras, sem sons: 

— Consegues andar, consegues saltitar, podes percorrer os meus ramos... 

— Ah, percebeu Piupiu, era a árvore que lhe falava! Nunca tal tinha ouvido dizer, que as árvores falam nas nossas cabeças, mas não admira, que Piupiu é ainda muito novo, tem quase tudo para aprender. Tu, por exemplo, podes experimentar.  Sentas-te debaixo de uma grande árvore e tentas sentir os seus pensamentos. Demora, pois não estás habituada, mas com tempo chegarás lá. Voltemos à conversa do pinheiro manso: — ... podes percorrer os meus ramos e comer os insectos que me atormentam, ou outros que em mim vêm pousar. 

— Então, pergunta Piupiu, porque é que as andorinhas têm de partir para África? Podiam cá passar o Inverno, escusavam de correr tantos perigos, de ter tanta canseira!

— Porque, responde pacientemente a voz, a bichada que em mim encontrarás talvez seja suficiente para te impedir de morrer à fome, mas não chega para alimentar mais andorinhas. E quanto ao frio, que há-de chegar, pois lá dizem os homens “Ande o Inverno por onde andar, em Dezembro cá há-de vir parar”, e a chuva, e o vento, o granizo, talvez até a neve, pois vais sofrer com tudo isso, mas se te abrigares num ninho de pica-pau abandonado que encontrarás numa braça do teu lado direito, podes sobreviver.

Agradece Piupiu, com a esperança de volta. 

— Também é um favor que me fazes, ao livrar-me de parasitas, diz o pinheiro manso. Vais sofrer muito, mas a tua asa há-de melhorar, em breve poderás esvoaçar de ramo em ramo, já sem medo do gato. E pode ser que consigas chegar à Primavera, rever os teus pais!

Os dias foram minguando, as noites crescendo. Soprava feroz o vento, a chuva ora vergastava a árvore, ora caía como leve poeira a molhar tolos, as noites eram gélidas, por vezes até os dias quando o Sol não descobria. Piupiu, a asa já sarada, tiritava no ninho de pica-pau, roído pela fome, que com o mau tempo os insectos permaneciam, também eles, escondidos nos seus abrigos. Imaginava então pais e irmãos atarefados, alegres, nessa quente África, papos cheios — tê-lo-iam já esquecido, ou dado como morto, como teria sucedido se o pinheiro manso o não tivesse ajudado, proporcionando-lhe abrigo, comida, companhia na sua solidão, preenchendo os tristes dias do Inverno com animadas conversas, para o animar e instruir?

E depois os dias começaram a crescer: “Janeiro fora, uma hora, e quem bem contar hora e meia há-de achar”. Veio Fevereiro, já com dias bonitos, em que Piupiu se atreveu a voar até à casa onde nasceu, a visitar o ninho da sua infância.

— Temos Primavera, já vieram as andorinhas! Ainda bem, que já estava farta de tanta chuva! — comenta feliz a dona, sem se recordar de outro dito popular: “Uma andorinha não faz a Primavera”.

Foi preciso Março para chegarem as primeiras andorinhas vindas da migração. . Mas nenhuma era da sua família.

Até que...

— Mãe, pai! Sou eu, não me reconhecem?


quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

A andorinha desasada (2/6)

 E agora, Piupiu, que vai ser de ti, sem poderes voar, para fugir dos nossos inimigos, que tantos são, como nos podes acompanhar na migração para África, que se aproxima?

Choram abraçados, a asa materna por cima, a proteger o Piupiu. Mas lágrimas não lhe podem salvar a vida. A conselho da mãe, arrasta-se até junto do grande pinheiro manso, a que na terra chamam pinheira, por vendo-a arredondada, a julgarem feminina.

De trás de uma roseira, espreita o olho matador de Tareco. Ainda não sabe que Piupiu está desasado, ou de um pulo já o teria apanhado. Caça e mata por vício, não por necessidade, que os donos não lhe faltam com a comida.

Avistando-o, a aproximar-se furtivo, a mãe afasta-se a correr pelo chão, para que o bichano a persiga a ela e não ao filho ferido, a quem grita que tente esvoaçar para a grande pinheira, onde estará a salvo do gato malvado.

Piupiu, por entre dores terríveis, salta, esvoaça, batendo forte a asa direita, e com grande sofrimento consegue alcançar o ramo mais baixo da pinheira.

Entretanto, Tareco salta sobre a andorinha mãe, tão rápido que parece impossível não agarrar a avezita. Mas a andorinha está atenta, e com o filho momentaneamente a salvo, levanta voo, escapando por um triz por entre as garras das patas dianteiras e vai pousar ao lado de Piupiu.

E agora, mãe, que vai ser de mim?

Sobe para os ramos mais altos e mais finos, onde o gato te não possa alcançar. Eu e o teu pai trazemos-te comida, esperemos que a tua asa fique boa antes da migração, pois, como sabes, não podemos cá passar o inverno, temos de ir para uma terra muito distante, chamada África, que fica depois do mar.

Nunca a jovem andorinha tinha ouvido falar no mar nem nessa migração. Mas não admira, tem poucas semanas de vida, aos pais, sempre a trabalhar para a sustentar e aos irmãos, falta o tempo para conversas e explicações inúteis — como a fruta, que amadurece no seu tempo, assim são as andorinhas, que sabem sem o saber quando é a altura de voltar, quando têm de partir. Para quê perder tempo com conversas e explicações, se sempre fazem o que têm de fazer, movidas por uma vontade superior, que desconhecem, mas a que são obrigadas a obedecer? Para elas, é tudo muito simples. É chegado o momento da migração, juntam-se à tarde nos fios em animadas conversas — Vamos então embora, vizinha? — Pois, lá terá de ser. E nem precisam de fazer as malas, apenas de bater as asas, elevar-se nos céus, rumar à casa de Verão ou de Inverno, guiadas sabe-se lá como, mas nunca erram, e é exactamente à sua casa, abandonada meses atrás que regressam, ei-las nos fios — Vizinha, a viagem foi boa?

Fez-se... Encontrou tudo bem?

O inverno fez alguns estragos na casa, eu e o meu marido já estamos a arranjá-la e a alcatifá-la.

Teve sorte, a minha foi destruída!

Não posso crer! Quem faria uma maldade dessas?

Não vi, não posso jurar. Mas estou convencida que foi o dono da parede.

E agora, comadre?

Temos de fazer outra, de raiz.

No mesmo local?

Pois claro. Os outros já estão ocupados, e não queremos brigas com ninguém.

Compreende-se, pois, a aflição de mãe e filho. Quando chegar a hora da migração, terá de partir, mesmo que o filho a não possa acompanhar.

Não tentes voar, a ver se a asa recupera depressa. Eu e o teu pai vamos continuar a trazer-te comida, esconde-te nos ramos mais altos e mais finos, onde o gato te não possa alcançar, repete.

Em baixo, Tareco observa cuidadosamente as nossas avezinhas. Lambe as patas, passa-as meditativamente pelos longos bigodes, concentrado que está em descobrir a melhor maneira de caçar a andorinha ferida. Também a ele o move uma vontade superior, que não compreende, mas o manda perseguir e matar animaizinhos indefesos.

Nasce-se gato, nasce-se andorinha, não se escolhe, e cada qual procede conforme a sua natureza, sem misericórdia nem remorsos. Por isso, Tareco, tendo estudado a posição e fraqueza da vítima, salta ligeiro sobre o tronco do pinheiro, com a ajuda das garras trepa veloz, sobe de ramo em ramo como se fossem degraus de uma escada, aproxima-se perigosamente do Piupiu.

Cuidado com o gato! — grita a mãe, que levanta voo. Nada mais pode, por agora, fazer pelo filho, tem mais três para cuidar, aí vai ela, preocupada.

Piupiu corre pela braça, para tão longe quanto consegue do gato malvado, que continua a aproximar-se, cuidadosamente, lentamente — a presa está encurralada, não tem para onde fugir já que não pode voar.

É a morte que vê aproximar-se no focinho daquele gato, os olhos fixo em si, basta um salto e acabará entre os dentes do felino. Afasta-se o mais que pode, para as finas ramagens, que vergam sob o peso do Tareco.

Um salto, um pequeno salto, e terá a andorinha na boca, depois descerá com ela, cuidadosamente, para brincar com a avezita, soltando-a e quando já se julga livre, caça-a com um pulo, assim se divertirá vez após vez, até que a andorinha morra. Então irá colocá-la à porta de casa, como presente para a dona — que o não apreciará:

O raio do gato só me traz animais mortos para o tapete!

O olhar aterrorizado de Piupiu, encolhido, cruza-se com o olhar assassino de Tareco. A andorinha despede-se desta vida, tão breve, em que nem chegou a conhecer o Mundo, nem essa África das migrações, nem o mar que é preciso atravessar para lá chegar.

Mas Tareco hesita. Analisa cuidadosamente a situação, pesa os riscos, avalia os ganhos, pondera as eventuais perdas: o ramo está alto, pode não se conseguir firmar ao saltar sobre a andorinha e cair desamparado no quintal acimentado. É certo que como todos os gatos, cairá de pé e diz-se que cada um tem sete vidas, mas não pode ter a certeza. O trambolhão será sempre muito doloroso. Ainda se em baixo estivesse a macia relva do jardim! Mas não, logo a danada da andorinha havia de fugir para este lado da pinheira!

Forte rajada de vento, que sacode violentamente o ramo, e quase o derruba, decide-o: a andorinha não vale o risco de uma queda no cimento ao caçá-la. Mas se ela tombar da árvore, ah, Tareco lhe passará os últimos sacramentos, na forma de dentadas, até acabar com ela. Cuidadosamente, volta-se para trás no fino ramo, fincando bem as garras para o vento e a agitação o não derrubarem, chega à parte mais grossa, já em segurança salta de ramo em ramo, desce em corrida pelo tronco.

Em baixo, fitando a andorinha, ainda paralisada pelo medo, rosna-lhe ameaça:

Estou de olho em ti! Ficas para a próxima!

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

A andorinha desasada (1/6)

 A neta pede uma história: — A do Piupiu!

— Outra vez essa? O avô conta outra!

Não! É a do Piupiu, a andorinha desasada, que a neta quer ouvir novamente. Lá terá de a contar — os avós fazem tudo o que as netas reclamam. E também, quase sempre, o que os netos pedem. Vamos lá, então. 

Todos os anos, mal começa a Primavera, vem a mesma família de andorinhas morar para o ninho no nosso beirado. Primeiro, limpam-no, reparam os estragos do Inverno, alcatifam-no com penas fofas, e quando já está confortável, põem os ovos, deitam-se em cima deles a aquecê-los, depois nascem os filhotes. Muito pequeninos, de olhos fechados, ainda nus…

— Porque é que os pais não lhes vestem roupas?

— Ora, tu sabes que os passarinhos não usam roupas. Têm penas, muito quentinhas, para se aquecerem e para voarem. Mas quando nascem, as penas ainda não cresceram, e ora o pai, ora a mãe, deitam-se em cima deles, com as asas abertas, a aquecê-los. Um dos pais fica em casa, a tomar conta dos bebés, o outro sai a caçar bichinhos, que leva no bico para alimentar as crias, sempre com muita fome. E elas, embora ainda não vejam, quanto sentem a chegada do pai ou da mãe, abrem muito os biquinhos para receber o bicho.

E crescem muito depressa, até que um dia, já com os corpinhos cobertos de penas, com as asas bem formadas, se enchem de coragem e, primeiro as mais valentes, depois as medrosas, se atiram do ninho abaixo. Batem desajeitadas as asas, voam aos tombos, mas, antes de se esmagarem contra o chão, já sabem voar e logo se elevam alto, acima dos fios eléctricos. E muito contentes, como nós também ficamos quando conseguimos fazer coisas difíceis! Dá então gosto ver a alegria com que voam, ora mais alto que os telhados, ora a rasar o chão!

De todas as andorinhas daquela ninhada, a mais feliz com a descoberta da sua habilidade para voar, pois poucas aves voam tão bem como as andorinhas, era o Piupiu, o mais pequeno da ninhada.

Vendo-o em acrobacias aéreas, que são as voltas e reviravoltas que as aves e os aviões fazem, a mãe avisa-o:

— Piupiu, tem cuidado! Ainda tens algum acidente, a voar à doida!

— Qual quê! — E não parava com as acrobacias. — Vê só esta volta! Vou passar rente ao chão, entre aqueles arbustos! E de olhos fechados!

— Não! — grita a mãe, aflita. Cuidad…

Não teve tempo de acabar.

Trás! Catrapás! Choca com ramo do arbusto, rola por terra o pobre Piupiu, a piar desconsoladamente: — Ai! Ui!

— Vês o que faz não ouvires os meus conselhos? — ralha lá do alto a mãe, sem se aperceber da gravidade da situação. Mas logo se aflige, ao ver que a asa esquerda do pobre Piupiu está caída, não a consegue mexer.

— Mãe, não consigo voar! — chora, de dor e de frustração.

A mãe poisa ao pé dele, também ela apoquentada. E olha preocupada em redor, não esteja a aproximar-se sorrateiro Tareco, o gato malvado da casa, que caça impiedosamente sardaniscas e passarinhos, e em salto tenta apanhar as andorinhas quando voam baixo por pressentirem a aproximação do mau tempo.

A asa está partida. 

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Os porteiros do clube

Embora muito raramente, têm aparecido por aqui alguns “anónimos” Ou anónima(s). Com mensagens reles, pestilentas. Não fazem crítica, negativa que seja, com pés e cabeça, antes atiram para cima dos meus textos, que lê quem quer e se quer, com os escarros imundos que lhes enchem a boca, numa ânsia de denegrir, de sujar, movidos (movidas?) pela torpeza. Se não é a inveja que os (as?) move, bem parece.  

Motiva-os também, pressinto, a vontade de marcar terreno, de me lembrar que o clube restrito dos “escritores” sempre teve e continua a ter acesso reservado, onde se entra com cartas de recomendação servilmente mendigadas, nome de família, bons padrinhos, bons conhecimentos.

Não esperem que eu responda a quem é incapaz de assinar por baixo do que escreve. Se desse confiança para tal, talvez argumentassem que o importante é o conteúdo das suas mensagens, e não o nome do autor. Não concordo, nem aceito. Se alguém escreve honesta e convictamente uma mensagem, como a pode renegar recusando apor-lhe o seu nome? E qual a credibilidade da mensagem anónima, eterna arma dos cobardes, dos frustrados, dos invejosos, dos que querem fazer mal sem expor o rosto angélico, sem macular a pureza das suas mãos sempre limpas?

Resta-me esclarecer por que tenho publicado algumas. Pois porque me divertem e me me lisonjeiam ao ver que tais sumidades se sentiram tão incomodadas pela minha escrita que prescindiram de um pouco do seu precioso tempo para aqui virem tentar intimidar-me, inibir a minha vontade e capacidade de escrever.

Roam-se e remoam. Fervam no vosso fel, espalhem-no na segurança do anonimato. Eu continuarei a fazer o que me agrada, quando e como me agrada.

domingo, 6 de dezembro de 2020

O Jogo do Pau Português

Em 2005, participei num estágio de defesa pessoal, no Sporting Club de Portugal, dirigido por um mestre de Ju Jutsu e de Karaté. De longe, o melhor de tantos que frequentei ao longo de quase quarenta anos. (História que fica para outra ocasião.)

Depois, houve lugar a demonstrações, que filmei. O fragmento que se segue mostra um mestre do Jogo do Pau Português e os seus jovens alunos.

Conhecia o Jogo do Pau da nossa literatura – quem não conhece o Malhadinhas, de Aquilino Ribeiro, que enfrenta num terreiro um mata-moiros varredor de feiras? Mas nunca o tinha visto e ao vivo.

Logo ali percebi porque, mal nos conhecemos em Lisboa, em 1998,  me disse o mestre Roland Harbesetzer, pioneiro do karaté europeu e autor de larguíssimas dezenas de livros: o Jogo do Pau Português é muito superior ao Bo (pau) japonês e a tudo o que ele tinha visto em Okinawa e na China com pau. Tinha chegado a essa conclusão após assistir, em Paris, a uma demonstração com o nosso mestre Nino Russo.

Não sei se o Jogo do Pau ainda sobrevive. Espero bem que sim.


sábado, 5 de dezembro de 2020

A Abafadora (6/6)

Foi ontem o padre chamado ao bispado e recebido gelidamente, sem que soubesse o motivo: tudo corria bem na sua paróquia. Até que bispo o convidou a ver um filme no computador. Lá estava ele, o vigário de Cristo, nu como veio ao mundo, em práticas lascivas, quiçá contra-natura, com a Piedade! Ah, conseguisse também ele morrer, já, de vergonha, como a Maria, no Frei Luís de Sousa! Morrer para evitar responder à pergunta do bispo: 

Que me diz a isto, padre?

E ele, a cabeça caída, escondida entre as mãos, lavado em lágrimas, só conseguir articular: Perdoai-me, padre, que pequei!

Nenhuma dúvida quanto a isso. O que queremos saber é o que vai agora fazer. Porque, assim dizia a mensagem que acompanhava o vídeo, também vai ser enviado para  os seus paroquianos. 

Ficou mudo por instantes. Depois, falou. Ia tentar compor as coisas com o menor prejuízo possível para a Igreja. Tentaria que a autora do filme, se ainda o não tinha enviado para os paroquianos, e talvez não tivesse porque lhe não convinha expor-se publicamente naquelas cenas íntimas, não fosse mais além na sua divulgação. Se o que queria era neutralizá-lo, destruí-lo, já o tinha conseguido. Isto porque lhe tinha revelado crimes tenebrosos no segredo da confissão e quereria assegurar-se de que ele, padre confessor, os não revelaria jamais.

Depois, havia a sua situação, afinal o menos importante. Qualquer decisão do Sr. Bispo seria acatada, seria escrupulosamente cumprida, sem reticências, nem protestos, nem público escândalo — expulsão, transferência...

Bom, o mal estava feito. Agora, havia que minimizar os estragos, não por causa dele, padre indigno, mas para não manchar a imagem da Igreja. O que poderia ser conseguido se a amante não  divulgasse o vídeo. Quanto ao resto, impunha-se confissão, arrependimento, penitência. E outras medidas que seriam oportuna e discretamente tomadas. A seu tempo. E, desnecessário insistir nesse ponto, fim imediato de todas as práticas sexuais, de todo e qualquer encontro com a amante. Que procurasse outro confessor.


Voltou, portanto, pela última vez a casa da Piedade. 

Gostou do filme, Sr. Padre? — perguntou, sarcástica, quando lhe abriu a porta.

Ainda mais vermelho ficou. Se podiam conversar. Ela deixou-o entrar.

Ei-los na sala, não abraçados no sofá, mas frente a frente, cada qual do seu lado da mesa.

Diz-me por que o fizeste, o que queres de mim, até onde estás disposta a ir... Para quem mandaste já o filme?

Por enquanto, só para o senhor bispo.

O que queres para não o enviares a mais ninguém?

Ela ria, a cabra, de satisfação por ver a angústia do padre, por ter nas suas mãos esse hipócrita, que a não achara digna de absolvição, nem penitência lhe dera, mas se deleitara com o seu corpo, com as coisas que ela lhe fez, com as coisas com que ele retribuiu! Boa para amante, indigna de salvação! 

O que quero? Para já, nada. Tenho os meus podres, o Sr. Padre — e disse-o em tom irónico — tem os seus, nenhum de nó vai denunciar o outro, pois não? E ria, satisfeita.

É tão fácil domesticar os homens! Tê-los na mão como fantoches do teatro de marionetas! 

Vá, vá à sua vida, vai cuidar do seu rebanho, confessar as suas velhotas, dê-lhes penitência que as redima dos seus pecados, esqueça-me, esqueça-se do que lhe disse no segredo da confissão! 

E, sempre sorridente, amável, empurrava gentilmente o padre para a porta, com a mão tapava-lhe a boca, atalhando os protestos, abreviando as delongas.

Voltou a encontrá-la noutro funeral de velhota do seu lar, face humedecida pelas lágrimas, a consolar o filho pela perda: Deixe lá, sei que lhe custa muito, mas é melhor assim, Deus sabe o que faz, a sua mãe já só cá andava a sofrer, não tinha alegrias nenhumas! Eu sei, sofremos tanto quando partem as pessoas que amamos! Eu também, pois, embora só tenha conhecido a sua mãe quando foi para o lar, depressa me afeiçoei a ela, tão boazinha que era! Olhe, ultimamente, têm-me morrido tantas! 

O filho da defunta, agradecido à mulher que tanto carinho dava à mãe, como ele via em cada uma das visitas, escassas, apressadas, distraídas, tenta consolá-la: É o nosso destino... Morre-se mais com o cair da folha...

Pois sim, mas o sofrimento era escusado! Que a sua mãe apagou-se como um passarinho, quando a fui ver às quatro da manhã parecia dormir sossegada, foi a minha colega, ao levantá-la para a arranjar para o pequeno-almoço, que deu com ela morta!

E levanta os olhos lacrimejantes para enfrentar, sardónica, o olhar de reprovação do padre, chegado para oficiar a missa de corpo presente.


FIM

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

A Abafadora (5/6)

 O  padre não cede facilmente. Receia que a sua força de vontade ceda, vencida pelas fraquezas que o celibato impõe a homem vigoroso, na meia-idade. Nunca fiando... que a viagem mensal a Lisboa, à civil, se o alivia momentaneamente, mais aguça o desejo nos restantes dias do mês do que o apaga. Sozinho com a Piedade, madura e descomprometida, resguardado de olhares, talvez ambos sentados lado a lado no sofá da sala, se ela se chegasse, derretida, meiga, chorosa como Madalena arrependida, sabia bem que, mesmo que quisesse, o corpo não lhe permitiria recusá-la. E, enquanto ela implora ajuda, lavada em lágrimas pecadoras que acordam sobressaltada parte do corpo que em padre jamais deveria despertar, não consegue impedir-se de a imaginar ajoelhada, encostada a si, a suplicar perdão, penitência, Sr. Padre faço tudo para merecer a sua absolvição... Devia ele, por medo, abdicar do dever sacerdotal de salvar esta alma de outra forma irremediavelmente condenada? Que faria Jesus em seu lugar, Ele que aceitou a tentação extrema durante quarenta dias e quarenta noites na solidão do deserto? Sim, podia ser vencido, era apenas um fraco mortal, mas, acabou por decidir enquanto reprimia o corpo, era seu dever roubar aquela alma a Satanás, talvez fosse essa a razão única da sua chamada ao sacerdócio! 

Anuiu, portanto.

Desfaz-se a Piedade em agradecimentos, que o padre encurta secamente. E ela passa-lhe através das grades bilhete com a morada e telefone, a fazer suspeitar o padre de que já contasse com a cedência.

Inútil contar o que se passou. Padre é homem, homem não é de ferro, sobretudo quando o sacrifício de décadas a viver em quase castidade o atormentam. Diga-se, apenas, que saíu de casa da Piedade completamente aliviado, incomparavelmente mais do que dos fugazes encontros com meninas de Lisboa em quartos rascas de pensões. E tem voltado todas as semanas, fiado na discrição da amante, no anonimato que permite a porta do prédio, com entrada pelo Centro Comercial.

Não tem insistido demasiado para que a Piedade se entregue à polícia. Uns meses a mais não farão grande diferença quando é a Eternidade que está em causa, pensa até que o tempo joga a favor do arrependimento, por isso, mas não só por isso, a amolece nos encontros semanais, deixando-a derretida, melada, cada vez mais receptiva à ideia: Sim Sr. Padre, estou a pensar nisso, dê-me só um tempinho, e também ele quer um tempinho, depois confessar-se-á, por enquanto não está arrependido, não é nenhum Padre Amaro a desencaminhar donzela, a encomendar o parto do filho à “fazedora de anjos”, sabendo que a parteira matava os bebés recém-nascidos, para depois abandonar a Pobre Amélia ao seu destino trágico! Não, é apenas um homem com necessidades, se culpa há, que se procure na Igreja que impõe irracionalmente o celibato, e se Deus desaprovasse que ele se deitasse com mulher facilmente o poderia impedir, por exemplo, privando-o da virilidade no momento crucial, avizinha os cinquenta, não seria milagre difícil, ou fazendo-o encontrar beata conhecida, a impedi-lo de subir as escadas para que ela não desconfiasse. Se Ele nada fez talvez seja porque se não importa, afinal o que se passa na Síria é terrivelmente pior e não o impede, há muito que se conformou com a inescrutabilidade dos desígnios divinos, ou teria já abandonado a fé que o mantém no sacerdócio, talvez aquela mulher matasse por falta de homem que a satisfizesse, sim, ela tinha-lhe confessado que sentia vários orgasmos enquanto abafava cada uma das pobres vítimas indefesas, e ele, embora os não conte, que está ocupado com o prazer de ambos, sabe que consigo ela também os tem nas suas relações em que fazem tudo, incluindo coisas de que só, esporadicamente, tinha ouvido falar no segredo da confissão! Tudo, mesmo!

Mas neste encontro veio preocupado. E quando, logo à porta, a Pilar se lhe agarra ao pescoço, a cobri-lo de beijos lascivos, afasta-a um pouco: Sabes que ontem fiz o funeral da dona Custódia, do teu lar?

Coitadinha, teve morte santa! Tive tanta pena dela! É certo que já tinha muita idade, quase noventa anos! Ninguém deu por nada, foi durante a noite, no sono. E, como se só agora desse pela insinuação implícita: O Sr. Padre não pensa que eu... Não acredito, a deitar-se comigo e a pensar que eu apaguei a velhota! E olhando-o bem no fundo dos olhos: Juro por tudo o que há de mais sagrado! Pela alma da minha mãezinha! Que o Senhor que faça cair um raio na cabeça se eu tive alguma coisa a ver com a morte dela!

O padre tenta apaziguá-la. Sem sucesso. Tão zangada está com a suspeita que lhe não consente o prazer costumeiro. Não, Sr. Padre, perdi a vontade. Não lhe admito que desconfie de mim! O que eu fiz, e foi mal feito, graças a si apercebi-me disso, acabou. Ainda me falta a coragem para me entregar à polícia, estou arrependida, sim, sinceramente, até já pensei dar um tempo para deixar prescrever esses crimes, o meu castigo não precisa de ser na prisão, será suficiente aqui, e bate com a mão no peito, os remorsos não me dão sossego, já só durmo com comprimidos, e quem é que me fez sentir assim, quem foi?

Volto então de hoje a oito, como de costume, espero que estejas mais calma e possamos conversar com calma. 

Volte, sim, Sr. Padre, hoje estou demasiado enervada para essas coisas, o que é que quer, a sua desconfiança ofendeu-me, deixou-me sem vontade. Que eu nunca lhe menti, bem o sabe

Morreu entretanto outra velhota no lar da Piedade. Mas, no encontro seguinte, o padre nem se atreveu a questioná-la. Nem podia, mesmo que quisesse, tal o ardor com que o acolheu, certamente a querer compensá-lo da frieza da recepção anterior. 


quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

A Abafadora (4/6)

 E naquele instante, a iluminação desceu sobre aquela pecadora empedernida: Sr. Padre, sozinha, sei que não consigo. Seria pedir demais se o Sr. Padre passasse um destes dias por minha casa, benzê-la, benzer-me a mim, ensinar-me a rezar, que já me esqueci, ajudar-me a vencer o pecado e o Demónio?

O padre recusa. As necessidades da carne são muitas, duras de suportar, aquela quarentona é o Diabo em figura de gente, melhor que não cair em tentação é nem sequer se chegar perto dela: Em tua casa, não, sabes o que são as más-línguas.

O Sr. Padre podia ir à civil…

Embora. Se me vissem a entrar em casa de mulher sozinha, o que não pensariam, o que não diriam? E por medo das bocas do Mundo o Sr. Padre recusa salvar uma alma! A porta do prédio dá também para o Centro Comercial, mesmo que alguém o visse, não desconfiava. 

Não, nem pensar. Vens à igreja, falamos aqui. Mas desde já te previno, é inútil persistires no pecado e quereres que te afaste dele. 

Tem razão, Sr. Padre, fez-me bem falar consigo, abriu-me os olhos, olhe, assim não já apago a dona Custódia. Era para ser na próxima terça-feira. E sim, venho à igreja falar consigo, agora vou-me embora, vou mais leve, sinto até um bem-estar interior. 

Foi o Espírito Santo que te tocou, volta quando quiseres.

E enquanto recupera para a próxima confissão, seguramente velha beata de pecados irrisórios, levanta as mãos e agradece Bendita sejas, minha mãe do céu, que me não deixaste tentar por aquele demónio em figura de gente! Fazei com que ela volte à igreja, para, com a tua ajuda, a poder encaminhar, afastar do Demónio, que, sem dúvida, tomou conta da sua alma!

No domingo, a mulher, Piedade de seu nome, voltou à igreja. Desta vez, para assistir à missa. E reconhecendo-a, o padre rejubilou interiormente: talvez haja ainda salvação possível...

Não falaram. Ele, apressado para oficiar na paróquia vizinha; ela, discreta, a evitar dar nas vistas, a cumprimentar com sorriso modesto as devotas vagamente conhecidas, que a olhavam intrigadas. Duas missas depois já nenhuma estranhava vê-la na igreja. E o padre ansiava por a voltar a confessar: teriam as suas palavras surtido efeito, teria ela deixado a prática criminosa, estaria em processo de arrependimento?

E noutra tarde de chuva, amodorrada, lenta, preguiçosa, com o padre no locutório a disfarçar bocejos enquanto as velhotas desfiavam rosários de pecados, pequenas maldades femininas, má-língua com as vizinhas, ofensas rancorosas à nora, ao genro, patifarias, pequenos furtos até, falhas tão numerosas como as contas dos seus terços, tão anódinos como a crença ingénua na possibilidade de mover a seu favor a vontade de Deus, não com o viver cristão, mas com a repetição infindável de pais-nossos, aves-marias, salve-rainhas em melopeias desprovidas de sentido -- eis que volta a Piedade, a alegrar a tarde do pároco, que via finalmente alguma utilidade no seu trabalho: Não, Sr. Padre, nunca mais... A dona Custódia? Rija, apesar dos noventa! Com um feitiozinho que faz favor! Mas não, irá quando o Senhor a quiser levar, que eu já lhe não mando ninguém desde que o Sr. Padre me repreendeu. É a minha grande amiga, mal me avista, que vê bem apesar da idade, logo me chama para junto dela, é só beijinhos, abraços, meiguices!

O sacerdote regozija, triunfante, depois, resguardado das vistas pelo locutório, arrependido da vaidade, levanta os olhos e as mãos, palmas unidas, murmura agradecimento à boa Mãe do Céu, que se não providenciou este milagre em curso, seguramente o aprova. Afinal, nestas intermináveis tardes de tédio, havia um propósito divino, havia uma ovelha tresmalhada para salvar do fogo do Inferno, e, mais se alegra, vidas em risco que já não são ceifadas prematuramente por mão assassina! Não, não é de todo inútil o seu trabalho!

A Piedade, já sabemos o seu nome, muito pouco para a denunciarmos à polícia, nós que, ao contrário do pároco, o podíamos e devíamos fazer se tivéssemos provas e soubéssemos exactamente quem é, a Piedade dá razão ao confessor, mas lamenta que Deus ainda lhe não tenha dado a força de vontade suficiente para se entregar às autoridades, por isso reitera o pedido: que venha um dia, de manhã, à tarde, quando achar melhor, a sua casa, expulsar demónios, benzê-la, rezar com ela para, juntos, conseguirem a graça divina do verdadeiro arrependimento, do assumir da culpa, da coragem para arcar com as consequências.


quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

A Abafadora (3/6)

Já em nova, quando roubava os namorados às colegas, à minha irmã, pouco prazer tinha com eles na cama. Mas, mesmo assim, fazia-o para as arreliar, para lhes estragar o namoro, e dava-me tanto mais gozo quanto mais apaixonadas estivessem. E era tão fácil! Bastava dar aos rapazes o que eles queriam e elas negavam, ou fazer-lhe, ou deixá-los fazer, coisas que as namoradas recusavam alegando vergonha ou nojo! As fingidas! Queriam-nos pelo beicinho, sempre atrás delas como cães no cio, para fazerem inveja às outras, e eu, tirava-lhos como quem tira a chucha a uma criança, elas a chorar, a berrar, e eu a rir. Delas e deles, que depressa me fartava e os mandava à vida, desfeitos, a fazerem-me juras de amor eterno, promessas, que depois de uma tarde na cama comigo ficavam loucamente apaixonados. Foi isto que não contei ao outro Sr. Padre quando me confessei para o casamento. Veja lá o que não seria se chegasse aos ouvidos do meu marido! Não, estou divorciada há dez anos certinhos, o meu marido trocou-me por outra mais nova. E então, para me vingar, voltei a seduzir homens casados, nem me pergunte quantos ou quais, que me não lembro, mas foram muitos, uns atrás dos outros, para que as mulheres deles sofressem como eu sofri ao ser abandonada. Parei quando comecei a namorar um médico. Também ele deixou a mulher, dizia a toda a gente que tinha encontrado finalmente o amor da sua vida. Vivemos juntos três anos, boa vida, estragou-a o meu filho, então na adolescência, que começou a roubar dinheiro ao médico para a droga. E ele desconfiou, marcou as notas, brigámos todos, foi-se embora, pior ficou, que nunca mais arranjou mulher jeitosa como então eu era — ainda agora, não sou nada de deitar fora — anda por aí aos caídos, por entre engates e paixões platónicas por gajas que vão para a cama com todos menos com ele, mas lhe papam jantares em bons restaurantes. Sim, Sr. Padre, volto já aos meus pecados, mas olhe, os mais importantes já eu os confessei.

Já o padre recuperou o fôlego. E enquanto mentalmente esconjura Eu te arrenego, Satanás!, prossegue: Bem vês, minha filha, não te posso dar a absolvição. Antes, é preciso que te arrependas, que te penitencies. E não é só com rezas, são precisos actos. Antes de mais, deves procurar as autoridades e confessar os teus crimes... 

Só se eu fosse tonta! Vou-me entregar para quê? Mais dia, menos dia, os velhotes morrem na mesma, até lá só andam a sofrer e a dar trabalho, é obra de caridade o que lhes faço, é certo que me dá gozo, muito gozo, por que haveria de deixar-me disso? E quanto ao que lá vai, lá vai.

O padre insiste. Antes de mais, deve deixar de matar pessoas, com ou sem risco de vir a ser castigada pelos homens. E não voltar a cometer adultério, desviando os maridos alheios. 

Mas isso já raramente faço, Sr. Padre. Estão a ficar velhos, desinteressantes, e eu já não estou para os aturar, também já pouco gozo me dá enfurecer as legítimas. 

Reza muito, minha filha, para que o Espírito Santo que ilumine, para que Deus te conceda a graça do arrependimento, que depois encontrarás tu as penitências redentoras. É a salvação da tua alma eterna que está em causa...


terça-feira, 1 de dezembro de 2020

A Abafadora (2/6)

 É a vez de a confessada não entender. Se o que faz é um bem para todos, para a patroa que se livra de cliente difícil, que os velhos, se estão bons, passam a vida a reclamar, se estão acamados, entubados, a sofrer, só dão chatices e trabalho, para a família, que não precisa de continuar a fingir amor, a sentir-se na obrigação das visitas, que nenhum jeito dão, o que lhes vale são os telemóveis para se entreterem enquanto fazem tempo à cabeceira da enferma, ou em mesa na sala de convívio? Ser apanhada, como, se morrem durante a noite, ninguém vê, tenho o cuidado de dar dose cavalar de comprimidos para dormir à colega de quarto, que nem que lhe passasse um comboio ao lado acordava? Acabo-lhes com o sofrimento, e prontos! O médico do lar desconfiar? Ele não vê os velhotes vivos, quanto mais mortos! Passa a certidão de óbito no gabinete da directora, todos eles devem já anos à terra, e o médico, por aquilo que recebe, não está para se maçar. Tá bem que morrem muitas velhotas acamadas durante o meu turno, mas é de noite que se morre mais, a mim, calha-me fazer a noite, dá-me jeito, vivo sozinha, a gratificação sabe-me bem. E prossegue, sem que o padre a interrompa para se focar nos crimes e pecados — está no lar contrariada, obrigada pelo Centro de Emprego, que a mandou para lá em vez de lhe arranjar coisa melhor, até tem estudos, fez, já adulta, mas fez, e muito lhe custou, o 12 ano, e puseram-na a limpar o cu a velhos e, pior, a velhas! Outras, desempregadas como ela, com menos habilitações mas bons padrinhos, são colocadas nos Centros de Saúde como administrativas, para ela, sempre o pior! Então, diverte-se, quebra a monotonia das longas noites, apagando uma ou outra, raramente um homem, pois eles não são tão chatos: Uma que refile comigo, que se atreva a fazer queixa de mim, e já não ouve cantar o cuco! Faço-lhe a folha, que é um instante. Se toma coisas para dormir, aumento-lhe a dose, não muito, para se alguma vez fizerem autópsias, não desconfiarem, e zás! Nessa madrugada, enquanto a colega de quarto ronca como motosserra, pedrada da dose cavalar de soporíferos que lhe dei ao deitar, abafo a queixinhas com a almofada até deixar de se debater, e eu como se estivesse a aconchegar-lhe a roupa, Durma bem, querida! Com os anjinhos!

E olhe, Sr. Padre, confesso também: não é só para me vingar, nem para aliviar a coitada, a família e a sociedade com essa obra de caridade. É pelo gozo que me dá. E, baixando a voz: Saio sempre do quarto com as cuecas encharcadas! Tenho dois e rês orgasmos enquanto apago a velhota! E olhe que quando me deito com um homem, é raro, muito raro, acontecer-me.

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

A Abafadora

 Neste dia que amanheceu chato, amodorrado, deu-me para vasculhar nos meus ficheiros e encontrei este conto, de 2018, que apareceu numa antologia organizada e publicada por colegas de escrita.

Dada a extensão do conto, vou publicá-lo aqui ao longo da semana, um excerto por dia.
Assim, aí vai o primeiro fragmento de "A Abafadora", avisando, desde já, como se fazia antigamente (e deveria ser escusado) que é obra de ficção, portanto qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.
A Abafadora (1/6)
Senhor padre, pecados não me faltam! Se os contasse todos, não saíamos daqui hoje.
A voz por detrás da grade do confessionário, calma, grave, quase pastosa, insiste: têm tempo, nada de pressas quando é a Eternidade que está em causa, também as tardes são longas, ao ponto de o sacerdote as achar intermináveis, depois desta virá outra pecadora, e outra, e mais outra, cada qual mais velhota, até parece que as beatas solitárias inventam pecados e pecadilhos para terem quem as oiça, Perdoai-me, Padre que pequei por pensamentos, palavras e actos, vai-se a ver, os pecados que aterram a velhota serão insignificâncias, coisa de ter rezado distraída uma ave-maria do terço, ou o de ter faltado à missa no domingo passado alegando estar doente, como se ela e Aquele que está lá no alto não soubessem perfeitamente que era só preguiça, falta de vontade de sair de casa naquela manhã de invernia, boa para ficar ao borralho da braseira,
— Tenha cuidado com a braseira, morre muita gente de idade, e até mais nova, por causa dos gases que produzem!
— Sim eu sei, Sr. Padre, já tirei a mantilha da mesa dela para arejar melhor, e não cubro as brasas com papéis de prata, Mesmo assim, mas confesse lá então os seus pecados, e melindra a velhota gracejando que na idade dela as faltas cometidas não serão muitas nem graves, deixando-a duvidosa do valor desta confissão feita a padre modernaço, que parece não acreditar no pecado, não distinguir mortais de venais, talvez nem acredite em Deus nem no Diabo, pensa já, enquanto escolhe os que julga mais importantes, tem é de se ir confessar a Fátima, lá os padres terão outra consideração, dar-lhe-ão penitência mais severa para a absolvição ser merecida, ainda hoje vai pedir à filha que a leve lá tão cedo quanto puder.
Por isso, o padre, a bocejar discretamente, culpa da modorra da igreja silenciosa, espera também desta confessada rol de bagatelas, vá lá, se tiver sorte, um ou outro escândalo sexual, que ainda está em boa idade para neles se envolver.
Então, minha filha?
Por onde hei-de começar, Sr. Padre?
Quando foi a última vez que te confessaste?
Creio que foi antes do meu casamento, já lá vão vinte e três anos. E apressa-se a acrescentar, Não confessei então tudo, que o padre conhecia-me e tive medo que desse com a língua nos dentes. Sabes que estamos obrigados ao segredo da confissão. Sei, Sr. Padre, mas também sei que os padres são homens e alguns homens são linguarudos, mais ainda que as mulheres. E aquele padre saiu pouco depois, e deixando de ser padre já não estava obrigado ao segredo da confissão. Ora se eu lhe tivesse contado certas coisas.... Vamos lá então, apressa-a o confessor, já cansado dos rodeios e pruridos, Começa então pelos pecados graves, se os tinhas, que omitiste na confissão anterior. Ou pelos mais recentes, e confessas depois os outros, se forem relevantes.
Começo então pelo fim, Sr. Padre. Trabalho num lar e de vez em quando abafo velhotes. Sobretudo velhotas. Detém-se um pouco, a saborear a surpresa que pressente por detrás da grade, depois prossegue: Durante a noite, quando estou de turno, vou-me a um daqueles que dá mais trabalho, ou que me aborreceu, ou fez queixa de mim à patroa, e enquanto dorme, abafo-o com a almofada. Vai-se como um passarinho, não sei se já matou pardais ou pombos, aperta-se-lhes o pescoço e o bico, e apagam-se num instante. É um ar que lhes dá, melhor dizendo que lhes falta. Pois assim é com os velhotes. De manhã, dou com eles frios, grito que a dona Guilhermina se foi desta para melhor, a patroa telefona à família, ao médico para passar a certidão de óbito, a sociedade fica livre deste encargo, eu do trabalho, e vingo-me das queixas, cá se fazem, cá se pagam, a patroa não perde, que a vaga é logo ocupada, não faltam velhos em lista de espera, a família fica aliviada daquele peso e despesa, e a velhota deixa de andar por cá a sofrer, vai ao encontro do Criador, que a recompensará ou castigará, como Lhe aprouver...
O padre, agastado, demora a conseguir falar. O que ouviu, no segredo da confissão, é crime, é pecado, Lembra-te, filha, do mandamento da Lei de Deus: Não matarás! Os idosos ao teu cuidado merecem carinho e protecção, só Deus pode decidir da vida e da morte, mas porque fazes tais malvadezas, não receias ser descoberta e castigada pelos homens?

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

A minha bicicleta

 – Afilhado, quando fizeres a quarta classe, dou-te uma bicicleta!

A promessa apanhou-me de surpresa, deixou-me sem fala, a rebentar de alegria interior. Uma bicicleta! Minha, não como a de outros garotos, surripiada às escondidas ao pai, ou a irmão mais velho, o que lhes valia depois umas boas tareias. Logo que pude, deixei-o na cavaqueira na adega com o meu pai, e corri a dar a grande notícia à minha mãe. 


-- Dá-te uma bicicleta? Tomaria ele ter uma! Isso são coisas que se dizem aos garotos.

– Dá, ele disse que dava, o meu pai ouviu.

– Então espera por ela.

Esperei. Fiz a quarta classe, o Ciclo preparatório, o Curso Comercial, etc., etc. Sempre sem bicicleta. Que essa há-de dar-ma o meu padrinho, assim prometeu num serão na nossa adega sessenta anos atrás.

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Reciclagem


Reciclo tudo o que posso – plásticos, metal, vidro, óleo alimentar, pilhas, lâmpadas, eletrodomésticos avariados. Será bizantinice minha, mas alguma da reciclagem que faço causa-me apreensão. Em primeiro lugar, os papéis.
Talvez numa grande cidade não seja fácil identificar o lixo de cada morador, mas aqui é perfeitamente possível saber o que como, o que bebo, que medicamentos tomo (logo, as doenças que tenho) para além dos papéis que, embora rasgados, revelarão a alguém com paciência dados de consumidor e bancários.
Poderia recorrer a um destruidor de papel; mas o processo é demorado e nem todo o papel é adequado; não posso, por exemplo, destruir nele as caixas dos “gadgets”, da Décatlon, do IKEA…
Tudo isso permite, muito facilmente, a alguém mal intencionado, não apenas conhecer os meus hábitos de consumo, mas igualmente o que tenho em casa a merecer uma visita na minha ausência.
Mas, pior, dei comigo a pensar, são certos eletrodomésticos que, mesmo avariados, guardam demasiada informação minha e dos meus. Por exemplo, telemóveis e telefones fixos, pen drive, discos velhos de computadores…
Ora ontem, a pensar nisto, levei trastes para o Ponto Electrão próximo. Entre eles, um telefone avariado, um Kindle com muitos dos meus escritos, na sua maior parte inéditos, e um velho disco de computador. Já a pensar no pior, deixei-o cair no chão várias vezes, mas não tenho a certeza de o ter avariado. (Não o formatei por não ter onde).
Eu a pôr os objectos na gaveta do Ponto Electrão e um cavalheiro, creio que estrangeiro, a pedir-mos.
Recusei. Uma besta avarenta e mesquinha, terá ele pensado.
Paciência. Havia demasiada informação pessoal naqueles dispositivos, recuperável com um mínimo de conhecimento.
Entrei no carro e segui, convencido de que mal me afastasse ele iria retirar os meus monos do contentor.

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Fazer chichi

Tinha dez anos, frequentava o Ciclo Preparatório. Era meu professor de Trabalhos Manuais mestre Cristóvão, um homenzarrão, velho dos seus trinta anos.

Ora numa das suas aulas deu-me uma terrível vontade de urinar e contorcia-me na carteira sem ousar pedir ao mestre para ir às sanitárias, indeciso entre o falar grosseiro próprio das minhas origens camponesas e a linguagem efeminada da vila. Mas a necessidade, imperiosa, género ou vou já ou faço aqui, obrigou-me a vencer a vergonha:

– Senhor mestre, posso ir lá fora?, atrevi-me timidamente.

O homenzarrão encarou-me: – E o que vais tu fazer lá fora?

– Chichi, balbuciei, olhos baixos.


– Queres ir fazer o quê?

A turma ria a bandeiras despregadas. Da minha atrapalhação, e por eu falar como uma menina.

Já não aguentava mais.

– Mijar, sussurrei, certamente corado como dióspiro maduro.

– O quê? Fala mais alto, que não te ouço!

– Quero ir mijar, senhor mestre!

– Vai lá então, mas não te demores.

Fui. E nunca mais fiz chichi na vida.

Foto: talvez dois anos mais tarde, a mesma turma.


terça-feira, 8 de setembro de 2020

Saudades

Dos tempos que passei na Faculdade de letras de Lisboa, primeiro na licenciatura, quase duas décadas depois no mestrado em Linguística e, teimoso que sou, no doutoramento em Linguística Computacional -- que não terminei e terá sido das raras coisas de que desisti. 

Eis duas imagens do último trabalho que apresentei.




quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Jimbrinhas

Era demasiado pequeno, franzino, sem jeito para nada. E, então, não faltavam mimos, que o bullying e os traumas de infância ainda não haviam sido inventados:

Não prestas para nada! Mal empregado o que comes! Não podes com uma gata pelo rabo! Não sabes fazer nada! E, a resumir, a culminar a caracterização da minha inépcia, inevitavelmente vinha palavra que tudo resumia e nunca ouvi fora da aldeia: jimbrinhas!

Só na escola brilhava. Sabichão. Devorador dos poucos livros que me passavam ao alcance, de tudo o que era letra, fosse em edital, em jornal velho, em pacote de açúcar. Mas, fora das letras – um jimbrinhas chapado!

Chegaram os livros de ‘cóbois’. E cada garoto logo escolheu a sua personagem, mais forte no soco, mais rápida no sacar do revólver, mais fatal no tiro, mais justiceira na missão de punir os maus, índios e ladrões de gado, jogadores invariavelmente batoteiros, assaltantes de diligências:

– Eu sou o Kit Carson!

– O Arizona Kid!

– O Roy Roger!

– O Texas Kid!

– O Bill the Kid!

– Eu é que sou esse! E rebolavam já, engalfinhados, no pé da terra batida da estrada.

Sem querer entrar em brigas, lá declarei que era aquele que nenhum escolhera:

– Eu sou o Jim Bridger!

Gargalhada geral: Isso, tu és o Jim Brinhas!

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Ó nino!

 Ó nino!

Olho divertido para as duas velhas do outro lado da estrada. Querem saber pormenores do funeral, receiam descer em vão a ladeira até à igreja, nestes tempos de Covid até os enterros estão mudados.
E eu, enternecido pelo tratamento que me faz recuar mais de sessenta anos, aconselho-as: deixem-se, por enquanto, ficar à sombra, se possível sentadas, o calor aperta, não há missa, e daqui a pouco podem ir calmamente até ao cemitério, na direcção oposta e a escassas centenas de metros.
Afasto-me, no enlevo daquele chamamento aldeão: Ó nino!
Ah, um homem é só uma criança grande e os homens, mesmo muito velhos, morrem meninos, escrevi há uns bons vinte anos.

domingo, 26 de abril de 2020

Dos meus treinos diários de Tai Chi

Parte final do meu treino da manhã, lá para o meio-dia, que não sou de madrugadas, menos ainda em sábado feriado.

segunda-feira, 16 de março de 2020

Um encontro em Samarcanda

Conta-se que um servo, aflito, procurou o senhor: Empresta-me o teu cavalo mais rápido para fugir para Samarcanda!
Porquê?, perguntou o senhor, atónito.
É que me cruzei com a Morte no mercado, e ela deitou-me um olhar esquisito que me apavorou.
O senhor emprestou o cavalo; mas ficou a remoer: não está certo a Morte levar-me tão bom servo. E foi procurá-la ao mercado.
Diz lá, ó Morte, porque é que há pouco olhaste para o meu servo de forma estranha?

Ah, fiquei surpreendida por o ver aqui, que tenho um encontro com ele, hoje, em Samarcanda!

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Cartas de amor

“Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.”
(Álvaro de Campos)

Estava no turno da meia-noite às oito quando camarada recentemente admitido na fábrica veio ter comigo. Tinha a tropa feita, queria constituir família, contava, e eu ouvia-o, sem nunca desfitar a máquina nem me desconcentrar, que ali as distrações pagavam-se caro: queimaduras, dedos esmagados, mãos amputadas até. 
Contava ele que tinha posto anúncio em revista feminina, não me recordo qual, uma dessas coisas do género Cavalheiro empregado, de vinte e tantos anos, situação militar resolvida, procura moça honesta, entre os vinte e os trinta anos para relacionamento futuro.
Eu era então muito preconceituoso, desconhecia que até Agustina tinha arranjado marido por esse processo; e depois, pareciam-me arranjos de conveniência, seguramente sem o fogo da paixão, que não sabia ser luxo ao alcance de poucos felizardos — como eu.
Ouvia, no entanto, sem grandes objecções. Um revolucionário tem de se mover no seio do povo como peixe na água. 
Ora uma rapariga tinha-lhe respondido, prosseguia o meu camarada de trabalho, estendendo-me a carta.
Agora não posso ler, disse, a tentar safar-me das confidências. 
Estou na minha folga — cada um tinha uma de meia hora ao longo da noite, substituído pelo chefe de turno, pois as máquinas não podiam parar — lê, que eu faço o teu trabalho.

Vendo pelo remetente que respondia de Santa Margarida: Maria Machado? Estás a ser gozado! nos quartéis não há mulheres! É mas é algum soldado! Respondeu-te para se rirem de ti!
Mesmo assim, dizia, queria que lhe respondesses!
Eu? Mas a carta é para ti!
Sim, mas tu tens alguns estudos...
Só o Ciclo, atalhei, na pressa de esconder as habilitações e ali estava quase clandestino, forçado a abandonar a capital pelas minhas actividades clandestinas. E para criar comités anti-coloniais nas fábricas.
Tens estudos, lês, escreves de certeza bem melhor do que eu. Responde lá.
Tínhamos toalhas de papel para colocar sobre as bancadas de trabalho e não sujar as peças. Numa delas, redigi a resposta. Fria, irónica. Os magalas não se iam divertir à nossa custa!
Agora passa para papel de carta e vê se não dás erros!
E voltei ao trabalho,  julgando que o assunto estava encerrado.
Na semana seguinte, já no turno das quatro à meia-noite, ele voltou, risonho, com outra carta. Li-a alto.
A Maria Machado pedia desculpa. Tinha respondido ao anúncio no gozo, para se divertir com as colegas, julgando tratar-se de parolo. E em tom sincero, explicava-se: morava no Entroncamento,  e trabalhava num dos quartéis como funcionária administrativa. Terminava repetindo as desculpas e com desejos de que lhe respondesse porque, via-se, tratava-se de pessoa culta, séria, com quem valia a pena corresponder-se...
Vês, eu tinha a certeza de que tu eras capaz! E foi envaidecido que respondi, já a atirar-me, que é como quem diz, a atirá-lo à moça. Olha, este domingo vou estar com a minha namorada, que é de lá, pergunto-lhe se conhece uma Maria Machado, que trabalha em Santa Margarida.
Conhecia. Ah, o Machadão! Assim a tinham alcunhado na escola, desajeitada, mal-feitona, maria-rapaz.
Nada disso demoveu o meu camarada. E em breve consegui-lhe encontro.

O primeiro e o último. A Maria Machado, mesmo feia e sem jeito, ainda se não sentia tão desgraçada que tivesse de o aceitar!